Se a década mais divertida do cinema foram os perdidos anos oitenta, ninguém pode a culpar de ser vazia. Tudo bem, muitos filmes se vendiam como entretenimento absoluto e barato, o cinema comercial ganhou o espaço conquistado pelos controversos filmes setentistas, mas ninguém pode taxar aquele período de grandes aventuras e pessoas ordinárias de simples arrecadadores de dólares. Só avaliar o momento em que vivemos esses tempos e ver a verdadeira década perdida dos filmes, digamos, mais comerciais e populares. Não sei se o tom saudosista foi o melhor para começar esse texto (saudosismo parece ser um hábito comum entre nós cinéfilos), mas é só lembrar dos filmaços que perpetuam até hoje nossa cultura e do time de diretores que estiveram à frente da produção dos blockbusters da década para entender o porque os anos oitenta foram, se não os melhores, pelo menos os mais malucos.
Spielberg, o preferido das tias, Zemeckis, o preferido dos tios (mesmo que eles não saibam), Reiner, o rei da “sessão da tarde” de alto nível, e a dupla insana, cultuada e condenada ao sub-reconhecimento John Landis e Joe Dante são alguns dos principais nomes que compuseram essa faceta saturada de diversão e alto-astral oitentista. Destes, destaco aqui Joe Dante, que soube tanto brincar com diferentes gêneros e narrativas, como embutir questões e tabus sobre a sociedade estadunidense e suas políticas, seu “americano jeito de viver”. Mesmo que nascido da classe-B do horror, Dante mostrou futuramente que seus filmes eram muito mais do que diversão e maluquice, o que fica óbvio se pegarmos “Pequenos Guerreiros” (1998) ou “Candidato Maldito” (2005) para comprovar os subtextos sociais e políticos personificados em bonecos e zumbis. Até a dupla masterpiece do diretor, “Gremlins” (1984) e “Gremlins 2: A Nova Geração” (1990), são violentas quebras de tradicionalismos.
Uma obra perdida entre sua suposta carreira de erros e acertos nos anos oitenta é “Meus Vizinhos São um Terror” (The ‘Burbs, 1989), encabeçada por Tom Hanks na flor dos seus trinta e poucos anos, e contando com um time de conhecidos, como Carrie Fisher (nem preciso explicar) e Corey Feldman (que parece até hoje fazer os mesmos filmes), além de uma premissa que acorda a pulga atrás da orelha. Ray Peterson (Hanks), um pai de família desocupado, passa a observar algo de muito estranho em sua pequena e pacata vizinhança. Seus recentes vizinhos são misteriosos, reservados, nem ao menos apareceram pra se apresentar. Vivem numa casa velha e feia, de estilo e trilha sonora de um castelo mal assombrado de um horror clássico, jardim horrível, alpendre caindo aos pedaços, e de madrugada estranhos barulhos e luzes saem dos porões daquele lugar inóspito. Não demora muito para que suas suspeitas se espalhem pela vizinhança, e logo seu amigo Art (Rick Ducommun) e o obcecado Mark (o ótimo Bruce Dern) formam um time para observar e descobrir o que os bizarros Klopeks estão fazendo na vizinhança deles. Tudo piora quando o vizinho Walter toma um chá de sumiço.
Fogo, escavações noturnas no quintal, aparições repentinas, as suspeitas só aumentam para Ray e seu time de bravos guerreiros. Mantendo uma vigilância fria e silenciosa contra os potenciais inimigos, os três só realizam sucessivas tentativas de contato que terminam sempre em atos estúpidos. E não importa quais forem as barreiras para proteger o bairro e as famílias, se for invasão de propriedade privada, violação de bem público, perseguição ininterrupta, elas serão derrubadas. E eles serão ainda mais ridicularizados. Não podemos esquecer de que quem observa também está sendo observado, e o time aqui é visto como o entretenimento diário de Ricky Butler, moleque que mantém distância e só quer ver o circo pegar fogo.
As mulheres, Carol Peterson (Fisher), esposa de Ray, e Bonnie (Wendy Schaal), “o show de vizinha”, também acabam cedendo uma hora para aquela loucura compartilhada. Enquanto os homens seguem numa guerra fria contra os fechados Klopeks, as mulheres tomam coragem e os forçam a usar a velha arte do diálogo, praticando a tradicional política da boa vizinhança. As coisas não melhoram para nenhum dos lados. Quem é aquela família esquisita, de costumes bizarros, talvez até estrangeira? O que vieram fazer aqui e o que procuram? Quem são aqueles que ousaram desestabilizar a segurança, ameaçar o status-quo de Hinkley Hills?
Quem são aqueles que serviram de solução para a quebra do tédio da vida suburbana? A televisão, a viagem pro laguinho e o marasmo tornam-se enfadonhos, quando se tem um verdadeiro horror vivendo logo atrás da porta vizinha. E dá-lhe teorias conspiratórias, pacto com o Capeta, irmandades secretas, mortes e cadáveres em fogueiras e latas de lixo. Não podemos ter isso perto de nós. Perto das crianças. O que se estabelece então é uma guerra silenciosa, de um lado as famílias de mais absoluto convencionalismo, como a de Ray, sua esposa e filho, igualmente a de Art e a relação velho-novinha entre Mark e Bonnie, e de outro uma família bizarra, que foge dos convencionalismos, que tem membros que sequer falam inglês direito e que nem sabem que está acontecendo uma guerra na vizinhança e eles são a potência rival. Chega uma hora em que as mulheres, a voz da razão, são afastadas quando a coisa fica séria: Agora é papo de “homem”.
Após uma situação ridícula atrás da outra, diálogos irônicos e aquela mistura deliciosa de tensão e diversão de Dante, os momentos finais se desenrolam e temos no discurso de Ray a síntese do longa-metragem, o ponto em que o cidadão estadunidense pacato se olha no espelho e reflete (e se revolta) sobre si mesmo, seu bairro, sua nação. A fala de Ray pode até ter facilitado a compreensão das reais intenções do filme para aqueles que ainda não tinham a captado muito bem, mas peraí, não estamos na década de oitenta? Nos filmes para toda a família, adaptáveis para todas as idades? Estamos! Essa necessidade de um filme divertido e que consiga atingir diferentes públicos cria no filme uma aparência de superficialidade, mas as entrelinhas críticas continuaram lá firmes e fortes até nos minutos finais, quando o inesperado acontece e Dante se rende ao final irônico e feliz, como se dissesse “Não gostaram? Então é isso que vocês querem? Então toma!”.
É um tapa na orelha da sociedade estadunidense e sua torcida de nariz pra tudo o que é diferente, sua desconfiança paranoica e seu dedo invadindo o que não lhes diz respeito. Claro, tudo cercado de diversão, otimismo e pegada leve, que se aproxima bem mais do feel-good do que das críticas transparentes dos anos setenta. Indo desde a microescala da vida suburbana, e a obsessão, o tédio, a invasão da privacidade e a ameaça constante e imaginária naturalizada dentro das vizinhanças, até o âmbito nacional do fantasma da insegurança, da ameaça exterior e das políticas internacionais imperialistas dos EUA com Coréia, Egito, Vietnã, Panamá, Camboja, Irã, Líbano (futuramente Iraque e Afeganistão, além dos países nos quais ajudaram a enterrar democracias e apoiar ditaduras), todos muito diferentes do modo de vida norte-americano, o longa é um retrato do olhar e ações intrometidas (não só) estadunidenses para nações e conflitos que não lhes dizem respeito, e um pedido para a interrupção de guerras que visam um “bem maior” e lutam “pela paz” quando, na verdade, estão acima de tudo cavando respostas para seus complexos que sequer existem. Dentro do maravilhoso flerte com o horror e mistura de gêneros, que Joe Dante sabe fazer tão bem, vem uma grande sátira e de compreensão direta sobre o olhar para os vizinhos e o olhar para si mesmo.
Belo texto, acho muito divertido esse filme! O terceiro ato é insano e muito divertido! 😁
Belo texto mesmo, esse final foi essa frase mesma, bem loucão.
Valeu gente! Pois é, apesar do terceiro ato ser porralouca, eu me diverti pacas também com o segundo, principalmente na parte da visita! 🙂