Seja mais cedo ou mais tarde, eventos históricos sempre chegarão às grandes telas do cinema. Desempenhando um papel de registro em sua recriação de época, revivendo momentos específicos da trajetória da humanidade para se sentir na pele os acontecimentos passados e nos darmos conta das diferentes situações através dos tempos, é na arte cinematográfica que tais eventos alcançam sua maior representatividade sensorial, quando bem feita. Mesmo que já saibamos o resultado, a tensão, a revolta e o sentimento de que somos um personagem dentro daquele universo de realidades é o que torna o “baseado em fatos reais” tão chamativo e vivo, seja para experimentar a podridão do holocausto nazista, mergulhar na época das grandes navegações, nos banhar em sangue honrado nas guerras travadas, sentir o coração batendo por conflitos entre países e pessoas.
Em época atual de democracia virtual, revoltas violentas e luta pela autoafirmação cultural, eis que surge um filme de referência direta a uma época passada, com semelhante panorama histórico-social. Marcando seu terceiro trabalho na direção, Ben Affleck nos conduz a “recentemente” revelada trama da CIA para resgatar os seis diplomatas estadunidenses que correram perigo de vida dentro de um Irã em estado de fúria e revolta, em plena Revolução Iraniana, após a invasão da embaixada americana pelo povo motivada por desentendimentos entre os dois países. A trama, de situação atual e realista, encontra seu alívio de seriedade e tensão no mirabolante plano elaborado por Antonio Mendez, a cabeça da operação secreta, de fingir que está fazendo um filme sci-fi no melhor estilo Star Wars, no qual os seis diplomatas fariam parte, a fim de tirá-los de lá sem suspeitas. Tal falso filme, que aposta na fantasia para literalmente escapar da realidade, recebeu o nome de “Argo”, servindo de título para a obra de Affleck.
Apesar de se passar no auge da Revolução Iraniana, são em seus ecos no futuro dos movimentos sociais no Oriente Médio/Norte da África e risco na soberania estadunidense que “Argo” encontra sua inspiração e força, sem medo de trazer alusões à Primavera Árabe e acontecimentos como o recente assassinato do Embaixador J. Christopher Stevens e mais quatro norte-americanos, na Líbia, pelo conteúdo de um filme que supostamente desrespeita o islamismo. Esse confronto ao mesmo tempo barulhento e silencioso entre forças do ocidente e oriente se mantém instável no cotidiano de ambas as partes, trazendo à superfície dramas também retratados pelo filme de Affleck, como o limite de ação entre uma nação ou cultura sobre a outra e as cabeças inocentes agora cortadas devido a discordâncias diplomáticas, algo semelhante com que Rodrigo Cortés fez no excelente “Enterrado Vivo”, no qual a principal questão são as vidas perdidas de ambos os lados, instalando entre eles um ódio silencioso, porém poderoso.
O triunfo de “Argo”, além da temática efervescente e de seu roteiro adaptado, é a bela construção de uma atmosfera de urgência, uma tensão que anuncia desde o começo que qualquer erro pode conduzir a situação a finais sangrentos. O auxílio de um uso inteligente das cores dá ao trabalho de Affleck um caracterização sensitiva, colorindo seus quadros conforme às emoções de cada cena. Com exceção das cenas passadas em Hollywood, nas quais o cômico impera e o veneno crítico come solto, ironizando as supostas almas vendidas por dinheiro e obras industrializadas de uma terra de cabeças não pensantes, e as cores amarela e laranja pintarem os quadros, o resto da obra é acompanhado por uma paleta fria de tons cinzentos e, principalmente, azulados, algo parecido com a construção visual de “Rede de Mentiras” (2008), thriller de terrorismo de Ridley Scott. É bastante contraditório que a cor que transmite paz, segurança e tranquilidade é a mais presente no filme, exatamente o oposto do enfrentado pelo grupo de norte-americanos em meio a furiosos iranianos, tendo que fingir tais sentimentos à força pela sua própria sobrevivência em território inimigo.
Essa plástica visual complementa toda a sofisticação de “Argo”, com uma direção repleta de classe, que nunca se rende a ações gratuitas, exageros técnicos ou cenas apenas de transição, mas entrega uma câmera controlada, ângulos valorizando o espaço, a claridade, os contrastes de luz e o sufoco, aproveitando os cenários finos das embaixadas, aeroportos, casas familiares que servem como refúgio e a sensação de conforto passageiro para dar de quebra com a instabilidade de uma filmagem mais descontrolada e por vezes amadora para caracterizar a ação de mão, da câmera agora no punho que acompanha o movimento em tela. Aproveitando do uso de filmagens de celulares e câmeras digitais em momentos de euforia do povo israelense, cria-se um efeito de realismo do qual muito se aproveita “Argo”, como se assistíssemos aquilo por televisores ou links da internet, espectadores de uma caprichosa recriação de época que invoca passado e presente, câmera instável e controlada, num espetáculo de dinamismo para vislumbrarmos a mudança advinda de uma massa furiosa por defender sua própria justiça.
Essa sanguinária busca por justiça ganha energia, medo, elegância e um forte caráter político de custo de vidas graças à já experiente condução de Ben Affleck, provando ser bem mais capaz em desempenhar esse papel do que atuando, mesmo sendo ele mesmo o protagonista de seu próprio filme, Tony Mendez. Buscando imprimir um estilo próprio, Affleck busca diversas influências cinematográficas para montar seu próprio thriller político, sendo a principal delas “Todos os Homens do Presidente” (1976). O filme de Alan J. Pakula é perceptivelmente uma base para seu thriller, no método de construção de uma tensão política, no estilo visual e nas cores calculadas, na composição visual semelhante nas cenas internas, nos passeios de câmera, na valorização de cores frias e tons azulados e até no perfil dos personagens, controlados pela ação. Tudo para montar sua estrutura de desespero contido.
Como era de se esperar de um bom fruto das entranhas dos padrões de Hollywood, Ben Affleck entrega uma direção que absorve vários dos moldes tradicionais do cinemão hollywoodiano, refletindo sua crença em reviver fórmulas de sucesso e, a partir delas, gerar algo novo ainda dentro de uma base segura. Podemos ver os vestígios dela aqui, no clichê das primeiras tentativas; várias ações que se completam no último minuto da possibilidade de sucesso; o esquema nos passos do roteiro; a resolução final dada ao filme; o desenvolvimento da trama voltado para a ação e o tratamento dos personagens como apenas peças atuantes dela. Para destoar desses convencionalismos, seu trabalho também invade, além do olhar sobre o registro histórico social/diplomático, o campo das sutilezas, levando poesia à sua representação do real, o que justificaria o final quase inverossímil com o simples fato de que a realidade é tão difícil e brutal que acreditar na ficção já não é mais uma escolha, é uma necessidade.
Diferente da situação de seus personagens, que contra todas as possibilidades acreditam no sucesso da operação, Ben Affleck só confirma o que muitos já esperavam, depois de “Medo da Verdade” (2008) e “Atração Perigosa” (2010). Sólido, classudo e estiloso, “Argo” é fruto de uma direção experiente e da profusão de um perigo iminente, abordado através de uma estrutura familiar no cinemão norte-americano e modelado bem na coragem em tratar-se de temas tão atuais. Assim como o filme de Kathryn Bigelow, “A Hora Mais Escura”, que também segue essa linha de confronto e demarcação história entre forças do ocidente e oriente, é injusto classifica-lo como simples “filme de Oscar”. Há tensão, há atritos diplomáticos, mas “Argo” também acredita na força da narrativa hollywoodiana, no elegante e na metalinguagem, e foi seguindo por esse caminho que conquistou os críticos da Academia, os cinéfilos de plantão e os espectadores casuais prontos para um entretenimento inteligente. O filme de Affleck ganhou a estatueta pelo fator que mais investiu, o senso de justiça.
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