A Marca de Preminger
Ao se falar de Otto Preminger, pensa-se logo em plano-sequência – e a tal ponto que, quando quer que um filme do diretor não os contenha em grande quantidade e visibilidade, chega-se a dizer que ele pouco imprimiu sua marca ou que não teve muito controle sobre o material, mal expressando sua qualidade de autor. Essa associação simplória não faz jus ao cineasta – há muito mais em Preminger que o bom uso de planos-sequência; afinal, não se encontra nele um fetichismo pela ferramenta, como se vê hoje em alguns diretores, mas, sim, o comedimento para usá-lo quando quer que de fato se agregue valor à narrativa.
Forever Amber, seu melhor e um dos seus mais esquecidos filmes, configura um dos mais precisos exemplos dessa constatação: há, como sempre, mobilidade na câmera de Preminger, mas de forma mais comedida, e sempre associada a algum corte de grande valor estético-narrativo – esse ponto é bem sintetizado por duas cenas: o duelo de esgrima, em que o cineasta associa a movimentação dos atores ao travelling e a troca de posições defensiva e agressiva entre os personagens ao corte, técnica que permite ao diretor ritmar a própria respiração do espectador, em meio à tensão do conflito, e a tentativa de latrocínio, na qual Preminger se utiliza desses instrumentos para criar e manter um suspense hitchcockiano.
Todavia, é notável que, na maioria das vezes em que o autor opta pelo plano-sequência, ele almeja o estabelecimento de uma associação espacial entre os objetos cênicos, especialmente os atores, como forma potencializadora de imersão na narrativa, o que se desdobra no caso particular de cada filme. Em O Homem do Braço de Ouro, por exemplo, o movimento de câmera segue Frank Sinatra pelos cenários, mantendo enquadramentos na altura de plano médio ou americano, de forma a criar empatia com o espectador, na medida em que a linguagem corporal do ator dá conta de demonstrar a gradual queda do personagem de volta ao vício, culminando na famosa cena da crise de abstinência – e as sensações do protagonista tornam-se muito mais vívidas pra quem assiste. Já em Bunny Lake Desapareceu, os travellings, ao contrário, não focam em perseguir a materialidade, o corpo, a presença de alguém, mas, sim, sua ausência, no caso, a da personagem-título, que, sumida desde o início da narrativa, tem sua falta, sua imaterialidade, atestada pela câmera irrequieta que, junto com os personagens, procuram, procuram e, no mais das vezes, não a encontram.
Essa associação espaço-objetos cênicos através do plano-sequência se encontra em Forever Amber notoriamente nas cenas passadas no teatro e nos bailes reais, em que Preminger busca inserir seus personagens na vida da corte e na geografia dos cenários, constantemente aproximando-se e distanciando-se dos seus rostos, conjugando-os a cortes que evidenciam significativas trocas de olhares e relações de poder. Há de se confabular se a preocupação do cineasta em mostrar e acompanhar o movimento dos atores não vem de suas raízes teatrais, ambiente em que o corte obviamente inexiste e a plateia precisa seguir os intérpretes por suas marcações, mesmo quando o deslocamento não possui grande relevância narrativa, mas, ainda assim, prende consigo a atenção do público – seria curioso que a opção estética por um elemento essencialmente cinematográfico advenha de uma noção básica de origem teatral.
A evidenciação da inserção de personagens nos ambientes em que se encontram, ainda que bastante presente aqui, atingiu seu auge na carreira do diretor em Tempestade Sobre Washington e Anatomia de um Crime: no primeiro, conjugando sua variedade de tipos que permeiam o Congresso Americano, uma pluralidade de personagens com interesses dos mais distintos, em singulares movimentos de câmera que serviam não somente para demarcar suas posições físicas no espaço como também, a partir delas, seus posicionamentos ideológicos e nos joguetes políticos por trás da instituição; no segundo, notoriamente na cena que melhor sintetiza essa preocupação do cineasta, quando, num jogo cênico, o promotor de George C. Scott usa seu corpo para obstruir a comunicação visual entre o acusado e seu advogado, vivido por James Stewart. Em ambos, assim como em O Incerto Amanhã e A Corte Marcial de Billy Mitchell, filmes que também possuem sequências de julgamento, põe-se em relevo o quanto o corpo, a presença dos personagens no plano é relevante para a dramaturgia premingeriana, e o que faz dele o que talvez melhor encene dramas de tribunal – ao usar a profundidade de campo para inserir dentro dos limites do quadro os personagens secundários, cada um com suas próprias emoções e pontos de vista, ao mesmo tempo em que acompanha o personagem central da cena em primeiro plano, Preminger se destaca como um maestro, conduzindo sua paleta variada de personagens rumo à potência dramática de cada sequência, fazendo o espectador se sentir parte daquilo.
Tal respeito à multiplicidade de perspectivas sobre os conflitos é o que, arrisco dizer, é a grande marca autoral de Preminger, que não escrevia diretamente os roteiros, mas conduzia e interferia fortemente no trabalho dos escritores contratados, notavelmente demandando revisões e alterações. Sua dramaturgia em prol do debate, do confronto de visões de mundo diferentes, torna sua narrativa mais rica, amarga e sem respostas. Mesmo quando presentes personagens tendentes, num primeiro momento, ao maniqueísmo, sua direção de atores dá conta de frear a monocromia – vide, por exemplo, a esposa tetraplégica de Sinatra e o traficante em O Homem do Braço de Ouro, a primeira com um forte trauma passado que contrabalança seu egoísmo nocivo sobre o marido e o segundo com o perfil de simples homem de negócios.
O tom cinza, palpável, de múltiplas faces, defeitos e qualidades dos personagens põe o conflito numa posição mais complexa e vívida – essa característica primordial do cineasta evidencia-se ainda mais nos anos sessenta, em seus dramas institucionais, que imbricas uma variedade de personagens em confrontos interpessoais e profissionais: se em O Cardeal o personagem-título tem a sua crença e a credibilidade da Igreja frente a ele testadas por temas como aborto, nazismo e racismo, em Exodus os conflitos étnico-religiosos entre palestinos e israelitas interferem em laços há muito tempo cultivados entre personagens e em A Primeira Vitória a trama de estratégia militar se comunica com dramas pessoais envolvidos em luto, complicada relação pai e filho e estupro. No entanto, nenhum outro expressa tão bem a busca pelo caráter múltiplo de tantos personagens quanto O Incerto Amanhã, com cada um apresentando fortes contrastes dramáticos, a exemplo do capitalista inescrupuloso cujo espírito paternal é despertado pelo filho de um dos camponeses que ele quer desapropriar e do juiz que passeia entre a ética profissional e a manutenção do status quo, pra não falar de Jane Fonda com seus altos e baixos de egoísmo e solidariedade.
Em Forever Amber, ainda nos anos quarenta, no entanto, essa tônica já se encontra bem estabilizada, notoriamente na figura da personagem-título, uma das maiores na carreira de Preminger. Na face, nas ações e nas cores vestidas por Linda Darnell combinam-se sua ambição, o desejo pela ascensão social, e o amor genuíno que sente por Cornel Wilde, certa inocência e uma honestidade junto com a malícia introjetada pelas frequentes intrigas da corte – que ela tanto use branco, em contraste com seus pares multicoloridos, nos faz acompanhar a pureza e simplicidade de muitas de suas intenções ao mesmo tempo em que não nos faz esquecer seu caráter ambicioso. Que as personas mais marcantes da filmografia de Preminger sejam mulheres não surpreende, grandes cineastas da época se interessavam pelos dramas femininos na sociedade machista: de Mizoguchi no Japão aos primeiros passos de Bergman na Suécia. Se Daisy Kenyon vai trilhando seu caminho de cada vez maior independência, assim como Laura, Gene Tierney é manipulada em A Ladra, Jean Seberg amadurece durante Bom Dia, Tristeza e é confrontada e subjulgada pela Igreja em Santa Joana e Maggie MacNamara desestabiliza dois marmanjos endinheirados com sua sinceridade, contundência e abertura para falar de sexo e relacionamentos em Ingênua Até Certo Ponto, tem-se também uma maior frieza, com ares de psicopatia, de Jean Simmons em Alma em Pânico, alguma frivolidade em Carmen Jones e certo maquiavelismo, concomitante a uma posição de vítima em um relacionamento abusivo, em Lee Remick, de Anatomia de um Crime. Os tipos femininos em Preminger são muito fortes e variados em suas relações com o establishment patriarcal e não seria diferente com Amber.
A ambição da personagem existe, mas seus relacionamentos amorosos, fora o principal, com o personagem do Wilde, pautam-se muito mais em necessidade de sobrevivência – essas figuras masculinas surgem em momentos capitais da trajetória de Amber, quando ela mais necessitava, seja na prisão, seja fugindo da polícia, seja na viuvez. E nota-se que os destinos fatais desses homens não se dá por influência ou por causa dela, mas devido às suas próprias naturezas, ora larápia, ora opressora e ciumenta. Amber vive seus percalços idealizando um futuro romântico e familiar com Carlton, personagem de Wilde, com quem tem um filho – pode-se dizer que, simultaneamente à sua ambição inata, ela age muito em prol dessas duas figuras, e que estas acabem por virar-lhe as costas faz com que se conclua o filme com uma forte nota de pesar, amarga, que não condena nem vilaniza os dois que partem, tendo em vista que seus motivos não são torpes ou incompreensíveis, mas pontua fortemente a posição da mulher naquela (só naquela?) sociedade.
Preminger, percebe-se, demonstrou interesse pelo drama das minorias por toda a extensão de sua filmografia – das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos dependentes químicos – muito antes da levantada de bandeiras que se nota fortemente de alguns anos para cá. O que o engajamento contemporâneo poderia tirar de proveito de um cineasta como Preminger é a maneira de inserir suas pautas numa rede de complexidade humana em respeito aos conflitos, ao choque de perspectivas, como forma de criar dramaturgia, em vez de simplesmente reproduzir modelos, estereótipos e paradigmas com fulcro meramente ilustratório e de denúncia, quando não recheados de frases de efeito em diálogos superexpositivos.
O interesse maior pelas múltiplas faces dos conflitos e das pessoas, certamente oriundo (ou ao menos aprofundado) da formação jurídica de Preminger, impulsiona, torna mais vívida suas narrativas e, por isso, as deixa mais passíveis de identificação e chamam um posicionamento do próprio público, já que os filmes em si não dão respostas aos entraves morais. Isso é reforçado pela miríade de personagens secundários que, apesar de pouco tempo em cena, revestem-se de alguma complexidade que acrescenta ao panorama dramático geral, e em Forever Amber não é diferente: o rei entediado que esquece seus apoiadores é o mesmo que não se deixa manipular por intrigas e que expõe, ao final, a amargura da farsa que constitui a vida na corte (George Sanders espetacular, inclusive); o Carlton de Wilde, ao mesmo tempo em que apresenta as qualidades de um herói romântico, deixa o moralismo e o egoísmo impedirem o desenlace amoroso com Amber; as figuras masculinas que surgem na vida da protagonista ora se apresentam como salvadoras, numa aura de genuína solidariedade, ora revelam suas faces opressoras.
Mas não somente os personagens se revestem de múltiplas cores. A paleta utilizada aqui é bem variada, sempre, no entanto, em tons mais amenos e sombrios – o contrário da prática de, por exemplo, Minnelli e Tourneur, o primeiro se utilizando de cores aberrantes para ilustrar a farsa (Gigi) ou a nostalgia (Agora Seremos Felizes), o segundo preferindo os tons mais claros para conferir o tom de fábula (A Vingança dos Piratas, O Gavião e a Flecha): ambos, mormente, filmando em estúdio, cuja artificialidade bem se coaduna com seus propósitos. A Preminger, no entanto, ainda que certo ar de falsidade seja conveniente no retrato da frivolidade da corte, interessa mais a ambientação mais sombria, a fim de conferir o tom de sobriedade e de bastidores à narrativa. Apesar da diversidade de cores, há predominância notável do azul, cor tão associada a estados melancólicos (nos EUA, fala-se, inclusive, em “sentir-se azul”, “feel blue”, em decorrência disso) e que cumpre esse exato papel aqui, no mais das vezes associado ao amarelo-alaranjado, sua complementar, na iluminação dos cenários – o azul (artificial) representando a luz natural e o amarelo, a das velas e candelabros. Que o azul melancólico seja a ilustração do natural, quase onipresente, portanto, aponta para um estado de espírito não somente da protagonista como de toda a alta sociedade londrina: não à toda, Bruce, o filho de Amber, reproduz a ideia de que somente será feliz quando crescer e dispensar as formalidades da corte, repontuando a dualidade entre as emoções falsas e superficiais e as vívidas e verdadeiras, que a própria Amber e o rei, em certo altura, realçam e que parecem distantes aos que se veem mergulhados na vida da corte.
Forever Amber, pode-se dizer, é um melodrama da melhor estirpe, com seus conflitos multifacetados cuja amargura equipara-se aos grandes momentos de Sirk. Melodrama, diga-se, não no conceito pejorativo que alia o termo a excessos sentimentalistas, soluções fáceis de apelo para a empatia do espectador – tal qual Daisy Kenyon, que expressamente nega o melodrama, no sentido do excesso, Forever Amber se enquadra no gênero posteriormente consagrado no Cinema por Sirk, de encenação dos conflitos pessoais como expositores das contradições e fragilidades das estruturas e ditames sociais. Em Preminger, o drama exponencia-se pela riqueza do espírito humano – aqui, a própria Amber, quando atuando em uma peça de teatro, se dirige aos espectadores para dizer que a peça não procederá com os julgamentos morais, deixando-os ao público (no caso, ao rei). Isso é o que torna a obra de Preminger, assim como a de Renoir, Wilder e outros grandes nomes, imortal. Que cineasta tão humanista tenha carregado fama de profissional intolerante, irascível e explosivo no set é uma dualidade que parece saída de um dos seus próprios filmes.
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