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Saga Candyman

O racismo e o ritualístico no cinema de horror via Candyman

O horror no cinema tem todo um caráter de preparo no medo, de jumpscares ao trato com a atmosfera, e tudo isso se interliga ante caracteres estéticos variados. No caso de Candyman, um dos principais pontos é o ritualístico da coisa. Somos racionais e vivemos coletivamente e, como tais, praticamos rituais todos os dias, dos menores aos mais complexos, independentemente se são escusos ou não. Candyman morrera por lidar com uma situação não aceita em sociedade na sua época. Um negro no século XVIII ter relações com uma branca rica. E sua morte é absolutamente ritualizada. O que nos leva a uma citação, diante de comparativo, marota minha. Após a morte e seu processo de transformação em sequência, e sob que forma a galera de sua classe lidou com isso, me lembra uma obra da clave da História Cultural: “O Grande Massacre de Gatos”, de Robert Darnton, no qual um de seus capítulos narra literalmente um massacre dos bichanos em tipografia francesa de operários sob vingança aos patrões e como isso reverberou por aquelas bandas. Os gatos tinham um tratamento melhor dado a eles pelos chefes das tipografias do que estes últimos davam aos seus funcionários, por isso a transferência do ódio aos patrões para os felinos. Num período sem leis trabalhistas ou sindicatos fortes, a ação do destroço era tida como perseverança cultural. Operários estraçalham esses bichos na vingança aos patrões por maus tratos no trabalho. E a operam de forma simbólica, teatral, com direito a risos e escárnio no massacre. O burguês hipócrita com pena dos animais e tratava os operários como lixo. A cerimônia do morticínio felino fora concretizada como forma de ridicularizar o patronado, matando inclusive a gata da patroa. Este ato reunia simbologia complexa que seguia desde tratar o patrão como um corno idiota a defenestrar a patroa de maneira sexual pelo símbolo de uma gata. Uma revanche simbólica.

E o que diabos isso tem a ver com a saga cinematográfica? Simetria safada, contraditória e dobrada. Primeiro, o contraditório afirmado, o caráter litúrgico da encenação do enforcamento dos gatos, assim como na morte de Candyman, tem um sentido escroto. Mostra a normalização da destruição de seres considerados inferiores por determinadas classes. No massacre, é a desforra do proletariado a estraçalhar os felinos como simbologia ao patronado, enquanto na contraparte, no filme, é o descendente de escravo ainda tratado como tal, visto como inferior, animalizado. Alvo de farra em sua queda. A segunda simetria, direta e consequencial, é no retornar como o personagem Candyman. Ele funciona na matança numa violência através da maldição carregada (que fora conseguida sob risos e escárnio de sua execução) onde ele leva o caráter de costumes para suas futuras vítimas com o uso do gancho e das abelhas  inclusive tornando-as culpadas por crimes que não cometeram, tal qual ele no passado.

O que seria repetido exaustivamente por tipógrafos outros relembrando a resistência que era possível à época. Deu pra sacar? Os ritos vis e animalescos são usados como referências e justificativas de ações que geram consequências culturais subsequentes. Neste comparativo, Candyman é o gato desprezado e massacrado, aqui por classe de patrões brancos racistas, que, ao findar sua vida, parte para a transformação sobrenatural matando quem proferir sua alcunha, agindo agora como o operariado vingativo em sua sanha de manter sua lenda viva pela eternidade. Ao mesmo tempo vítima e algoz. Dependente dos ritos repetidos a posteriori. Tal qual os trabalhadores franceses. Isso fica claro quando o vilão afirma só sobreviver pela crença do povo. Ou seja, um mito vivo, sustentado pelo folclore popular assim como o antagonismo ao patronado francês escroto de outrora.

O Mistério de Candyman (1992)

O primeiro filme propõe de cara o vilão como referência popular, onde vemos o perscrutar da pesquisadora Helen, querendo provar, dentro do folclorismo black, que as mitificações de crimes por conta do Candyman são nocivas, e a violência que assola a comunidade deve ser combatida, e não creditada a outrem. Ela sai de seu escritório, vai ao encontro do desconhecido. Como ela consegue aprender como são estes cultos populares, e quais as influências exigem naquela turma? O monstro ataca. Através da culpa, da farsa e do abandono. Candyman a faz passar pelo caos e pela tortura, e quando aplica, à própria Helen, a culpa por mortes que não passam por ela. Assim como ele fora injustiçado séculos atrás de forma bem pior. Estratégia incomum e bem complexa a jeito de um assassino serial slasher.

Filme atmosférico. Diferencia ambientes, como na cena nos bairros pobres em primeiro plano, lá atrás a parte rica da cidade cintila ao longe, enquanto se pisa e se perambula nos escombros da pobreza. Os movimentos de câmera denotam tensão, no preparo, como num deles, que se aproxima do carro de Helen por cima, vagarosamente, antes da primeira visita empírica ao espaço de ação do monstro. O começo do mistério. Sabido notar a ironia num ponto divertido onde a pesquisadora branca mora no tipo de prédio dos cortiços. Vendido mais caro, cara de chique por conta da localização. Mais um ponto de proximidade desta mulher e o seu algoz, como se o ambiente corroborasse este encontro. Estes elementos deixam claras as intenções do longa em tornar esta atmosfera citada um personagem bem vivo.

Tal qual o operariado francês replica ações de companheiros conterrâneos matadores de gatos de outrora, a galera alimenta Candyman com sua crença. Com seus segredos e códigos. Num sistema de autodefesa, como se o monstro fizesse parte daquele universo para o bem e para o mal e isto fosse aceito por ser propriedade intelectual, social e cultural de determinado povo. Ele existe e não mexa nele. É o nosso bicho papão. Nós damos um jeito nele. O fato de os brancos ricos não trazerem nada de bom é uma mensagem, assim como aqueles que espoliaram funcionários numa tipografia e, principalmente, aqueles outros que viram por bem executar um preto por ter a audácia de engravidar branca apaixonada por ele.

Candyman 2: Vingança (1995)

A segunda parte da saga vai focar na origem da esculhambação. A exploração da morte e a criação do mito propriamente dito. E a partir disso foca-se mais num objetivo apenas deixado no ar no primeiro filme. A busca por companheira pela eternidade, desde que fora privado da sua, 200 anos atrás. Obsessão de Candyman. Aqui, expansão de sua lenda. Tudo isso durante o festejo do Mardi Gras em Nova Orleans. Sempre nos rituais.

História e memória. Este longa escolhe um caminho ainda mais intimista da gênese do protagonista ao introjetar sua vítima mor, a conhecida final girl do cinema slasher, não como figura comum, mas como descendente do próprio Candyman. Traço escondido por séculos por conta de uma família escravocrata que não queria aceitar a herança de sangue negra. Um ponto fraco agora é explicitado a partir desta descoberta. O espelho da amada. Durante o calvário de Daniel Robitaille (Candyman com seu nome de civil), este espelho é mostrado a ele e se vê seu reflexo alquebrado e deformado pela tortura. Sua alma está presa neste espelho que se encontra na senzala de casa de seus antigos patrões. A humilhação e o sofrimento dentro dele. Candyman, o reflexo do ódio racista, busca a perpetuidade do sangue. Como forma de ter a eternidade em seu plano, e se justifica o fator de se ter que proferir a palavra Candyman 5 vezes diante do espelho para o mesmo aparecer. Esperteza do roteiro nesta simbologia.

Há uma mudança na narração, sai a voz sinistra e entra a rádio informativa, que descortina lendas, casos policiais e mantém todos atentos aos festejos da cidade. Trilha e clima emulam o primeiro filme, porém este se propõe como um slasher padrão. Sem a mesma atmosfera do original, mantendo a violência, e a montagem entrecortada do primeiro em vários momentos. O racismo e a pobreza levados em conta diante das ações da polícia que pouco está se lascando papa os negros sumidos estão lá perfeitamente.

A desesperança e o desespero almejam o destroço, alimentam o vilão. Quando as pessoas não têm mais no que acreditar, por desespero ou por luta cultural, se agarram nos mitos em busca de alguma salvação ou expiação. O próprio Candyman é a prova disso. Tanto ele causa, quanto procura esta expiação.

Candyman - Dia dos Mortos (1999)

O terceiro longa-metragem já mostra sinais de cansaço e é feito no esquema made for TV. Ainda mantém algum interesse, mesmo com um trato de maior precariedade, como um filme b, nos efeitos, clima, ações, narrativa e personagens. A repetição da descendência é a pauta. Numa continuação de trama direta do segundo filme, em caminhada e manutenção proeminente de um slasher comum, porém, sempre um Tony Todd mantendo a qualidade, um grande e histórico vilão do cinema de horror moderno.

De interessante, temos o Candyman de vez na cultura pop. Usado pelo mercado nos períodos de festejo e sendo apropriado em seitas de idiotas metidos góticos (espécie de pré-emos), devidamente estraçalhados, é claro. A festa da vez agora é o Dia dos Mortos latinizado, bem apropriado até. E soma-se a ele o curandeirismo adentrado na periferia conferindo novas figuras vivendo de seus cerimoniais, os latinos somam aqui, com as forças policiais – mesmo que bem imbecis – em cima, obviamente.

Destino e chaga. Candyman é uma persona que busca um objetivo que resiste ao tempo e vive por sua danação. Um destroçado que agora existe para cometer atrocidades porque não existem mais opções. Construído como tal, tem seu cerne vital interligado nisso. Acaba por ser eternamente solitário, praticando suas ações, sendo seguido e reverenciados por uns, deixando pavor em outros, mas sempre na solidão completa da existência.

Uma saga de relações de poder. No massacre de gatos, a exploração do patrão com reação do operariado, enquanto em Candyman, o pai da moça estraçalha o negro como um bicho por simplesmente ser normatizado naqueles tempos. Materiais encenados e reencenados mediante que classe os segue, sejam os patrões senhores de escravos escrotos e seus defensores racistas ou uma turma pobre na outra ponta, seja ela de tipógrafos ou comunidades negras do século XX decidindo em que monstros acreditar. Não é de graça que os acontecimentos dos três filmes e suas ritualizações sempre ocorram em algum tipo de farra. No primeiro, uma grande fogueira estaria sendo armada numa comemoração; na segunda etapa, o Carnaval Yankee, Mardi Gras, de Nova Orleans; e no derradeiro filme, o Dia dos Mortos em Los Angeles por conta do público latino. O abandono. A exclusão. Expiação dos excluídos. A pobreza e o racismo. Candyman como anjo vingador dentro de um folclore brutal com raízes no tangível. Importância da atmosfera de opressão. História das pessoas comuns. Folclore das classes pobres no usufruto daquilo que está à sua disposição donde visem forma de resistir com estratégias da vida comum.

A equiparação aqui entre o humano e o animal é proposital. Nos faz entrar em outra esfera cara a esta saga: o racismo escravista. A maior chaga humana moderna que deixa reminiscências até a presente data. Onde os negros eram animalizados e objetificados como mera mão-de-obra útil, mas uma propriedade sem direitos. Tanto que esta é a justificativa óbvia para o negro, que engravidou a branca rica, morrer. Ele se atreveu a ter relações com ela. Mesmo ele sendo um artista e livre, filho de ex-escravo, o simbólico o persegue. E o mata. O negro. Animal. Racializado. Objeto. Artista. Escravo. Vilão?

Texto integrante do Especial Monstros no Halloween

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