Vencedor do Bafta, este foi o último filme dos concorrentes ao Oscar que tive o prazer de assistir, sendo um ano muito bom para o cinema: mesmo que nem todas as obras sejam obras-primas, confesso que está muito bem nivelado este ano, exceto "Maestro" todos os filmes são muito bons.
Dito isso, "American Fiction" parece compor um grupo de filmes com tema sobre racismo, mas desta vez aqui o olhar é bem diferenciado. Temos o excelente Jeffrey Wright num dos seus maiores papéis, com todos os méritos tendo reconhecimento, fazendo um escritor demais prolixo, querendo alcançar uma linguagem mais universal, mas tendo que se contentar em representar um interesse de gueto.
É interessante como o filme faz uso da literatura, embora ache que tudo fique muito didático, e o filme às vezes confunde a realidade com o literário, mas sem uma conversão realmente visceral: há muito aqui se imiscuindo, mas é mais nos diálogos do que em imagens.
Vamos acompanhando nosso escritor e sua saga com a família, o irmão que saiu do armário já na vida adulta após um casamento frustrado e a mãe com problemas de saúde, além de uma empregada de família. Particularmente gosto do mosaico, dá um tom mais humano, assim como sua investida amorosa.
Mas o cerne do filme é mesmo o fato de que o nosso protagonista, ironicamente, alcance sucesso com um livro que ele escrevera como tom de gozação, retratando o "negro" de forma superficial e da forma como os brancos gostam, ou seja, vitimizado, agressivo, com vários estereótipos de cor. É, na verdade, um filme sobre o "pacto da branquitude".
O "pacto da branquitude" é um conceito discutido no campo dos estudos críticos de raça e etnia. Refere-se à ideia de que a sociedade é estruturada de forma a beneficiar os brancos em detrimento de pessoas de outras raças ou etnias, ou, quando valorizam as culturas afro, fazem-na pelo viéis da cultura branca padrão (veja como o escritor teve que "descer" o nível, ou como a cultura do mercado, inclusive das adaptações ao cinema, é discutido aqui).
Este pacto, muitas vezes invisível e não explicitamente articulado, perpetua a supremacia branca e sustenta desigualdades sociais e estruturais. O termo é usado para descrever as maneiras pelas quais as normas, instituições e práticas sociais são moldadas para favorecer os brancos, muitas vezes sem que eles percebam ou reconheçam esse privilégio.
A noção de "pacto da branquitude" nunca é explicitada no filme, mas é explorada de forma tácita, como na figura da outra escritora negra retratada. Ao fazerem parte de um seleto grupo de jurados literários (e por ironia do destino o tal livro ser objeto de avaliação), o filme destaca o olhar diferenciado sobre a negritude vindo de pessoas brancas e pretas. Assim, mesmo que o filme não seja tão direto, há toda uma gama simbólica de reconhecimento e confronto das estruturas de poder que perpetuam o racismo e a discriminação racial, bem como o papel dos brancos na manutenção dessas estruturas.
Achei apenas que o filme ficou muito no discurso sobre o livro, talvez fosse interessante algo mais misturado entre ficção e realidade, mas ainda assim é uma obra que ressoa, e com todos os méritos foi lembrada pela academia. O final do livro não poderia ser mais debochado: é o lugar para onde, inconscientemente, muitos mandam as pessoas pretas.
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