O romance Drácula (1897) de Bram Stoker e o filme Drácula de Bram Stoker (1992), dirigido por Francis Ford Coppola, entrelaçam história e ficção de maneira complexa e profunda. O personagem central, Conde Drácula, é inspirado na figura histórica de Vlad Țepeș, também conhecido como Vlad, o Empalador, um príncipe da Valáquia (atual Romênia) que viveu no século XV. Vlad foi um defensor cristão do seu território contra o avanço do Império Otomano muçulmano, uma luta que evoca as Cruzadas e o choque entre o cristianismo e o islamismo na Idade Média. No filme de Coppola, esses elementos históricos ganham nova vida, oferecendo uma reflexão sobre o tempo, a história e os conflitos religiosos que moldaram o mundo moderno.
A estética é bem teatralizada, lembra mais Shakespeare do que Bram Stoker, inclusive com diálogos carregados na dramaticidade. Pensando bem, Shakespeare é quase contemporâneo ao Conde, de modo que talvez tenha sido intencional aqui. Deste modo, curto bastante como vai direto ao ponto, sem rodeios: o filme inicia em um mapa mundi, com um narrador, situando o espectador no século XV, no qual o avanço do Império Otomano representava uma ameaça existencial para os estados cristãos do Leste Europeu. Vlad, sendo príncipe da Valáquia, se posiciona como um defensor fervoroso do cristianismo ortodoxo contra os turcos otomanos. Esse confronto é fundamental para compreender tanto o romance quanto o filme, uma vez que a figura de Drácula é construída como um guerreiro cuja fé e violência caminham lado a lado.
No filme de Coppola, a motivação principal do personagem Drácula está enraizada em um desespero profundo após sua esposa, Elisabeta, cometer suicídio. Ela, erroneamente acreditando que Drácula havia morrido em batalha contra os otomanos, tira sua própria vida. O suicídio, dentro da lógica cristã medieval, condena sua alma. Esse evento central leva Vlad a renunciar a Deus em uma cena chave do filme, onde ele profana um altar cristão. O Drácula de Coppola, portanto, é movido por uma perda espiritual e emocional, que conecta o conflito religioso com um drama humano mais íntimo.
A condenação de Drácula à imortalidade, com seu pacto implícito com forças demoníacas, reflete um tema recorrente na história: a luta entre bem e mal e as consequências da renúncia à fé. No filme, a iconografia cristã é central para o desenvolvimento do personagem. Drácula é um herói que, em um momento, é visto como defensor do cristianismo, mas, ao perder sua fé, transforma-se em um ser amaldiçoado, uma espécie de antítese ao salvador cristão.
A cruz e outros símbolos cristãos aparecem no filme como armas contra Drácula, evidenciando a tensão entre sacralidade e maldição. Essa tensão é um reflexo direto das guerras religiosas da Europa, onde a fé não apenas guiava o comportamento individual, mas era a força que justificava o conflito entre nações.
O filme de Coppola podem ser interpretados como alegorias sobre o colapso das grandes estruturas imperiais e o surgimento de um mundo mais secular. Durante o século XIX, quando Stoker escreveu seu romance, o Império Britânico estava em seu auge, mas enfrentava crescentes desafios internos e externos, como a ascensão de nacionalismos, tensões religiosas e a industrialização que mudava a sociedade. O vampirismo pode ser visto como uma metáfora para o colonialismo, com Drácula sugando a vida de suas vítimas, assim como os impérios exploravam os recursos de suas colônias. Já não há mais santos, é um filme moderno: questiona as bases da fé e até mesmo da própria nascente ciência, já que muito do que ocorre tem contornos sobrenaturais.
Embora ache o miolo do filme cansativo, o gótico se faz presente, e o diretor aqui adota elementos visuais que lembram o estilo expressionista alemão, especialmente no uso de sombras dramáticas, cenários exagerados e uma atmosfera de horror psicológico, todos traços característicos de filmes expressionistas como Nosferatu (1922) de F. W. Murnau e O Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene.
Se a história de amor condenada entre Drácula e Elisabeta (e depois Mina) remete diretamente às tragédias românticas shakespearianas, como Romeu e Julieta ou Otelo, utilizando-se também do estilo do expressionismo alemão, nao tinha como dar errado. É um filme charmoso, meio exagerado às vezes, tem excessos de núcleos cujo fio da meada quase se perde (Van Helsing, Reinfield merecem um capítulo à parte, bem como Jonathan, que é meio que esquecido). Ainda assim, um filme poderoso situado bem no coração do nascimento da modernidade.
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