Born To Be Wild!
Em meados da década de 60, o cinema hollywoodiano enfrentava uma forte crise. A popularização da TV e a inquietude de uma nova geração faziam com que o antigo formato não funcionasse mais para os grandes estúdios, que começaram a amargar um declínio financeiro agudo. Assim, não tiveram outra saída senão se adaptar e apostar todas suas fichas nos chamados primeiros diplomados em cinema. Compartilhando extenso conhecimento sobre o cinema clássico americano e o cinema europeu, Martin Scorsese, Robert Altman, Steven Spilberg, Francis Ford Coppola e cia. encontravam em sua juventude a identificação necessária para captar os sentimentos vividos na época, e assim dar um novo fôlego à esse decadente meio. Não só isso, tiveram carta branca para a realização de suas idéias, tiveram tremendo sucesso com seus filmes e literalmente tomaram controle de tudo. Esse período de grande criatividade é tido como a Nova Hollywood, que salvou o cinema da ruína e foi preponderante para o formato que possui hoje em dia.
Pois bem, junto com Bonnie e Clyde (1967) e Meu Ódio Será Sua Herança (1969), também é considerado como o início e a afirmação desse ressurgimento do cinema hollywoodiano o filme Sem Destino (1969). Não só para a indústria cinematográfica, a obra é um marco em muitos sentidos. Retrata como nenhuma outra os questionamentos vividos pela época, mais que isso, representa o nascimento de uma nova geração e toda uma nova maneira de se enxergar do mundo. Concebida pela colaboração de um semi-famoso e completamente maluco Dennis Hopper com um ainda desconhecido (e curiosamente filho de um dos atores mais consagrados da hollywood clássica) Peter Fonda, esse filme define contracultura e liberdade com exatidão. De quebra, como uma nota exclusivamente pessoal, define o termo ator coadjuvante.
Fonda tem seu primeiro papel de destaque em Wyatt, ou simplesmente ''Capitão América'', um sereno jovem hippie que compõe a primeira parte da dupla de motoqueiros viajantes. Hopper, que já estrelara em Juventude Transviada (1955) e em alguns outros sucessos, depois de demonstrar um comportamento explosivo e instável e ser praticamente expulso do meio cinematográfico, marca seu retorno ao dirigir e atuar nesse filme como Billy, a outra metade da dupla de motoqueiros hippies. Após contrabandearem drogas na fronteira com o México, ambos personagens partem em uma viagem pelo interior dos Estados Unidos em direção a um carnaval liberal chamado Mardi Gras. Seu visual pouco ortodoxo e sua maneira de viver soam como um verdadeiro grito de liberdade, e isso faz com que ganhem identificação ou, principalmente, antipatia por onde passem.
Sexo, Drogas e Rock'n Roll ao máximo: a jornada começa!
Em sua primeira parada, são acolhidos por uma família cujo sustento vem da própria plantação e a elogiam, dizendo que podem trabalhar em ''seu próprio tempo'', ou seja, são completamente libertos a qualquer imposição de uma sociedade predeterminista. Logo depois, dão carona à um estranho, também hippie, que alega ser de uma cidade qualquer, já que todas são iguais. Depois de algumas olhadas as belas paisagens da região árida americana e muitos baseados, finalmente chegam à comunidade de seu novo amigo. O grupo que um dia foi de aproximadamente 50 pessoas e hoje é reduzido a quase 30 não se importa nem um pouco em deixar sua barba crescer, usarem drogas em excesso ou viver em um mesmo quarto, mas de maneira alguma desejam voltar a cidade, nem mesmo se suas plantações fracassarem e tiverem que morrer de fome. Em poucas palavras, se não aceitam viver com regras que eles mesmos estabelecem, podem ser classificados como alternativos ao pé da letra.
Um dos elementos centrais de Sem Destino certamente é a viagem. O simples fato de atravessar uma fronteira e encontrar um ambiente com pessoas e costumes diferentes representa muito mais do que se pode imaginar. Aqui, sair de uma cidade e entrar em outra significa sair de um conjunto de regras e entrar em outro, e para quem está na estrada, nada disso importa. Portanto, já que a dupla não se sente na obrigação de respeitar qualquer regra, se infiltram no meio de um desfile com suas motos. São presos por isso, e então finalmente temos a melhor parte do filme.
Dentro do cárcere, são apresentados a peculiar figura de George Hanson. Um advogado que bebeu demais no dia anterior, e, filho de um rico e poderoso homem, comete excessos com frequência, como denunciam os policiais. Com todos liberados, George diz que sempre quis ir ao Mardi Gras, mas, por razão ou outra sempre parava no meio do caminho. Agora, pega carona na moto de Wyatt e ruma junto a dupla em direção ao seu sonho.
''...mas falar dela (liberdade) e vive-la são duas coisas diferentes,
É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado''
Em Sem Destino, o personagem de Jack Nicholson é a máxima representação da liberdade e da insatisfação, mais que a dupla principal ou que os hippies da comunidade. Completamente entediado com o estilo de vida que tinha, embarca na aventura com excitação e realização. Em meio a muitos baseados e conversas non-sense sobre ovnis e peixes-bois, o personagem pronuncia as mais sinceras e diretas palavras sobre o verdadeiro significado de liberdade. Para ele, um sujeito realmente livre representa uma ameaça muito grande à uma comunidade cujos integrantes são sujeitos completamente condizentes as regras pré-estabelecidas, sujeitos que não tem nenhuma seleção em relação ao que é determinado. Tal ameaça é tão grande que causa medo. E tudo isso é confirmado com o ataque que sofrem do bando de caipiras que os ameaçara na últma cidade em que passaram. George é morto. Além de nos deixar os momentos de maior destaque nessa gigantesca realização, as conversas à beira da fogueira, deixa também a melhor atuação de um coadjuvante de todos os tempos, e ainda anuncia a chegada de um verdadeiro ícone, Jack Nicholson, um dos maiores atores de toda história do cinema.
Finalmente, ao se recomporem e chegarem ao Mardi Gras, os protagonistas visitam o prostíbulo a que seu falecido amigo tanto mencionou e são apresentados à duas moças. Junto delas, desfrutam daquele nada convencional desfile e então vão para um cemitério. Lá, com o ''presente'' dado pelo seu amigo hippie a quem deram carona pela primeira vez, entram no efeito daquela droga e protagonizam uma cena tão chocante quanto verdadeira. Suas alucinações são fragmentadas e a sua edição rápida deu um ar de loucura e libertação, além de sugerir sexo e um trauma do personagem de Peter Fonda.
A seguir, temos mais um diálogo inspirado quando Hopper diz a Fonda que, quando chegarem à Florida ficarão ricos e poderão se aposentar. Fonda diz que não, que não estarão livres e que só estragaram tudo, uma vez que não serão mais nômades. É então que temos o trágico e significativo final, sem dúvida um dos mais marcantes do cinema. Mesmo com a morte de George, o preconceito (e o medo) ainda os segue quando uma dupla de caipiras atira contra a dupla e os assassina. Em Sem Destino, afinal, temos a ascenção e a queda do movimento hippie (que na época da realização já era decadente). Em poucas palavras, a minoria questionadora não conseguirá sobrepor a maioria preconceituosa: tentar rever algo pré-estabelecido custa muito caro e inclusive pode ser mortal.
Não só o movimento hippie em si, mas qualquer tentativa de inquietação pode se identificar com Sem Destino. Reflexo de um tempo real, da Guerra do Vietnã e da renúncia de Nixon, a obra de Hopper e Fonda transcende qualquer simples atribuição como um faroeste moderno, road-movie ou filme rebelde. Além de selar o início de uma das épocas mais criativas para o cinema, influenciou todo um novo sistema e uma nova geração. Não obstante, consolida o espírito rock'n roll com Born To Be Wild e outras canções de Jimi Hendrix (outro artista de gigantesca proeminencia desse movimento), que viria a se popularizar pelo mundo de maneira estrondosa durante os próximos anos. Sem Destino é um filme que deve ser visto não só por cinéfilos, mas por toda pessoa que deseja entender melhor o mundo em que vivemos hoje.
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