Uma das maiores virtudes na arte do cinema é nos fazer aceitar, consciente ou insconscientemente, algums excessos ou algumas deliciosas mentiras. É notável que na maior parte de suas obras-primas, temos alguns exageros completamente necessários que nos fazem enxergar que a sétima arte não é uma simples representação da verdade. Há, no entanto, um outro tipo de cinema onde a virtude é proporcionalmente associada ao nível de realidade atingido, que em muitas ocasiões são cinebiografias ou baseado em fatos reais. E é exatamente nessa virtude que O Lutador emerge como uma das maiores realizações dos últimos tempos. O grau de humanização atingido pelo seu personagem central chega a ser chocante, lembrando em alguns momentos uma obra-prima do gênero, Touro Indomável (1980) - curiosamente também sobre um lutador em decadência. Além de ser um filme que disseca o ser humano de forma raramente vista, de quebra traz uma das maiores atuações dos últimos anos.
Apesar de não ser real, a trama de O Lutador é considerada por muitos como uma autobiografia do ator Mickey Rourke. Galã em meados da década de 80, largou tudo para abraçar o universo das lutas. Depois de alguns insucessos e um rosto deformado, volta ao meio que lhe trouxe fama como um decadente, chegando por baixo. Em uma performance não menos que magnífica, ganhou diversos prêmios e foi negligenciado injustamente pelo oscar. Uma volta triunfal para uma das mais polêmicas estrelas da atualidade.
O que, pela concepção da trama, parece mais um enfadonho drama vai aos poucos se desenrolando em uma densa construção sobre o ser humano. Randy ''The Ram'' Robinson, foi um lutador profissional vitorioso e adorado, mas que agora, mais velho, usa sua fama para fazer dinheiro em lutas no estilo ''gigantes no ringue'' (aqui do Brasil, onde os lutadores visivelmente encenam violentos combates). Como não soube fazer outra coisa durante toda sua trajetória, acumulou diversos fracassos em sua vida pessoal que viriam a aborrecê-lo profundamente: a relação ''quebrada'' com sua filha (Evan Rachel Wood), a dificuldade financeira agúda e a falta de um amor em sua vida, que parece enfim ter encontrado concessão na figura da dançarina Cassidy (Marisa Tomei, incrível). A princípio, são dramas excessivamente explorados pelos mais diversos tipos de filmes, mas que foram construídos e desenvovidos de maneira tão singular que se tornaram quadros extremamente favoráveis ao propósito da trama.
O Lutador registra a decadência de seu protagonista e a evidencia como elemento central de sua proposta. Ao pronunciar ''Os anos 80 eram o máximo'', Randy sintetiza todo seu saudosismo para com aquela época e a dificuldade em se ajustar à essa. Temos isso representado em seu desatualizado video-game (ao qual o personagem com que joga é ele mesmo), pelos seus bonecos de brinquedo e também sua paixão pelo hard/glam metal que dominavam o cenário musical da época com bandas como Mötley Crüe, Guns, Def Leppard e Quiet Riot. E para a confirmação de que ele ainda vive na sombra de seu passado, nenhuma representação é mais significante que sua luta desesprerada para manter sua aparência daquela época com métodos artificiais: anabolizantes, sessões de bronzeamento e tintas-de-cabelo.
Não obstante, a lente de Aronofsky também é precisa em captar outro sentimento amargado por Randy, a solidão. A camaradagem e reconhecimento encontrados em seu circuito parecem mais fomenta-la que suprimi-la. E agora, incentivado pela ordem médica, decide deixar os ringues e dar um novo ruma a sua vida ao tentar reatar com sua filha, ao tentar investir em uma relação amorosa e trabalhar em um supermercado.
Contudo, o que a história almeja durante sua exibição é somente plantar os alicerces para um dos finais mais surpreendentes dos últimos tempos. Numa ação quase suicida, Randy salta em direção à sua glória, ao seu passado, em direção à única verdade existente em sua vida. Em todos os níveis, reforça como nunca a palavra destino. Prova que, não importa o tamanho do esforço, nunca deixará de ser ele mesmo. Sua vida não tem sentido algum senão a luta. Uma brilhante conclusão!
Finalmente, O Lutador surpreende bastante. Muito além de um simples filme sobre lutas ou um drama de superação, é um estudo imparcial sobre o ser humano. Não julga falhas ou virtudes, somente expõe. Bato na mesma tecla ao dizer que, por exemplo, enquanto O Poderoso Chefão (1972) utiliza figuras idealizadas para discorrer sobre a natureza do homem, este tem como arma principal a humanização crua de seu protagonista. O talento do diretor Darren Aronofsky se mostra proeminente na construção de sequências marcantes, como naquela em que Randy vai entrar atrás do balcão do mercado e ouvimos o eco de uma torcida animada, como se fosse uma luta ou um desafio. Ainda, apresenta um desfecho tão genial que nos obriga a posicionar O Lutador como o melhor filme do ano.
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