Talvez o novo filme do jovem diretor Damián Szifron seja uma representação muito interessante do que se constitui o cinema argentino hoje, o texto visual que faz sucesso não apenas no seu país, mas na América Latina e que chega, com muito entusiasmo, às premiações de Hollywood. O filme de Szifron, ou como queira chamar um interessante apanhado de crônicas modernas sobre as relações humanas na urbanidade, é sobretudo um momento sublime da Argentina, desde outro grande clássico de sua cinematografia dos novos anos, O Segredo dos Seus Olhos.
As tramas de Relatos Selvagens são estudos acerca da selvageria humana, a raiva, tentando investigar através de um texto delicioso "causos" onde o ser humano, em todas as etiquetas possíveis, provocam ao seu redor ações explosivas, motivadas por um sentimento em comum, a vingança. Esse mesmo sentimento é o ponto de partida para duas histórias, uma que inicia o filme, com muita graça e por uma perspectiva sustentada no humor negro, inigualavelmente cru no que consta sua crítica sobre os atos terroristas nas Américas; e uma no último ato, na análise sociológica do que vem a ser o discreto charme da burguesia (tomando emprestado de Buñuel), igualmente retratado, por outra trama, em Festa de Família.
Ora, estamos diante, é certo, de um grande diretor que, ainda na tenra idade de sua produção cinematográfica, sabe como tornar a narrativa fílmica sustentada não apenas na colocação direta de sua câmera, e aqui aplaudimos o trabalho do diretor de fotografia Javier Julia, assim como sabiamente tira de seu elenco de peso a força dramática simbioticamente idealizada com o humor sarcástico do roteiro. São seis crônicas redigidas para sustentar a ideia de que o ser humano é, em essência, influenciável pelo ambiente e pelas pessoas; e aqui está o diferencial do filme, pois o seu diretor-roteirista é ideologicamente humanista. Ele é inteligente ao ponto de recorrer às situações que envolvem construção social (na primeira história) e as consequências psicológicas que delas resultam e a ética da abordagem na sociabilidade com o Outro, nas histórias do guincho e da estrada. Essas mesmas histórias criticam a publicidade (como na história da estrada, onde mais parece, de início, uma propaganda de um novo carro no mercado), a política (como na história da moça que coloca veneno na comida do seu inimigo mortal), a família (na última história), o Estado contra o homem (na história do guincho).
O filme funciona, em síntese, por similitude. O espectador não tem como se ver apático pelas histórias que se encontram as personagens: do cara que tiramos "onda" no ginásio, que agora quer se vingar, ao poderoso chefão que compra promotores e investigadores pra salvar a reputação de sua família. Mas no fim, todos nós temos um limite, e é essa insustentável leveza do ser que o diretor procura: o ponto de partida para se irar com tudo e com todos. O direito de ser louco no meio dos loucos. Pior ainda, os loucos aqui são gente "normal": a modelo "besta", a moça da lanchonete, o bonitão do carro de luxo, o engenheiro de prédio, que implode a si mesmo a cada multa do guincho, e no fim explode e vira heroi; o ricaço imoral e a noiva "sem sal" que vira uma onça na sua festa de casamento. E esses loucos só poderiam enlouquecer se ao seu redor existessem loucos tão desvairados quanto eles; e isso tem de sobra, por que os coadjuvantes tem papeis também excepcionais. As subtramas, nesse sentido, vão implementando, compondo uma obra repleta de coerências sutilmente vendidas na televisão, sobretudo nas novelas latino-americanas.
O filme Relatos Selvagens foi o indicado ao Oscar para a categoria de melhor filme estrangeiro desse ano. O trabalho de Szifron é belíssimo, por que reunir seis histórias em que cada uma possui em seu eixo central a atratividade para o espectador, e o desenrolar de sua própria trama, não havendo relação direta entre elas, mas incorporando aspectos simbólicos existentes nelas, é de grande estima. O diretor deu uma entrevista ao Jornal O Globo, que diz que a última história tem um caráter "conciliatório", acerca da consequência de um ato que leva à vingança. Nesse sentido, ação e reação é a lei regente em Relatos Selvagens.
*este texto foi primeiramente publicado no blog E Aí, Cinéfilo, Cadê Você?
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