Resolvi assistir a Dogville pela ótima crítica alcançada aqui no próprio cineplayers. E de fato essa produção é fantástica, muito sutil em suas críticas e ironias desferidas contra, não somente, aos E.U. A (ao jeito americano de viver), mas também ao capitalismo de um modo geral e ao próprio ser humano. Como mencionou algum participante aqui do site (não me lembro quem) Dogville está aberta a várias interpretações. Realmente está; assim como toda obra literária (refiro-me às de qualidade) está suscetível a variadas construções de sentidos. No entanto, é válido lembrar que o texto (nesse caso o filme) literário é uma janela aberta pela qual se podem vislumbrar várias paisagens, porém ele não é uma janela escancarada. Explico-me. Dogville é sim passível a várias interpretações, mas não a qualquer interpretação. Digo isso justamente pela possibilidade de compreender essa produção, mesmo sem saber do caráter antiamericano do seu diretor Lars Von Trier bem como ao período histórico ao qual Dogville faz mencão: E.U. A, pós-depressão de 1929.
De início, Dogville já se mostra bastante diferente das produções cinematográficas tradicionais. Ela é essencialmente teatral. Não há um cenário propriamente dito, todo o desenrolar da narrativa é destrançado sobre um grande palco no qual existem apenas desenhos que representam as casas da cidadezinha de Dogville e alguns objetos como mesa, cama e cadeira. Cabe ao espectador imaginar as construções e as paisagens com o narrar da produção. Assistir a Dogville é como ler um livro e projetar, imaginativamente, as paisagens, ruas, becos e casas narradas em cada página.
O filme começa com a narração de John Hurt que nos avisa que a história constará de um prólogo e será dividido em nove capítulos. O tom que Hurt imprime à sua narrativa é algo fenomenal no filme e faz de sua atuação, mesmo não aparecendo, importante peça para a composição de Dogville.
Grace (Kidman) chega à pequena Dogville fugida de gângsteres que a persegue. Logo é acolhida por Tom (Paul Bettany) o qual manifesta grande interesse por Grace. No entanto, para Grace ser aceita e acolhida em Dogville é necessário que se faça uma consulta a todos os moradores (o que é perfeitamente possível uma vez que a cidade tem em torno de 20 habitantes mais as crianças) e somente alcançando maioria dos votos Grace poderá permanecer refugiada em Dogville. Após a votação, a permanência de Grace é aceita em troca de pequenos serviços que ela deverá prestar aos moradores de Dogville. Inicialmente a bela fugitiva acha justo essa condição e passa a procurar afazeres para ajudar os moradores de Dogville, que, a princípio, não encontram muita coisa para Grace fazer.
Com o desenrolar da trama, que é muito bem construída e possui uma excelente gradação, os afazeres de Grace vão aumentando, e se antes não havia o que fazer, a certo momento do filme há tantas tarefas que Grace praticamente nem dorme e se desdobra em mil para dar conta de olhar os filhos de Vera (Patrícia Clarkson), ajudar na colheita de maças, cuidar da filha de deficiente de uma das moradoras, ajudar na lojinha da cidade dentre tantos outros afazeres. Todas essas tarefas são executadas sem receber salário (o que ocorrerá mais tarde).
Nesse momento do filme é interessante fazer uma interlocução entre o sistema capitalista e a exploração a que Grace passa sofrer por parte dos moradores de Dogville. Só como exemplo de ligamento a que propus, menciono um dos pilares do marketing, que é o de criar necessidades, e isso é muito bem abordado em Dogville em uma cena na qual a própria Grace diz que para um lugar que não havia tantas necessidades ela está trabalhando muito. Como um dos pontos fortes do filme são diálogos bem montados e impactantes, esse certamente faz parte desse conjunto de estratégias que, simultaneamente, critica, ironiza e age cinicamente frente ao capitalismo.
Outro ponto marcante nessa produção são os estupros sofridos por Grace. Estes assumem não somente o significado literal e strictu do verbo estuprar, mas uma significação múltipla, pois Grace (e nós) somos diariamente estuprados por esse sistema capitalista no qual estamos inseridos ao ponto de não conseguirmos conceber outro sistema de organização sociofinanceira.
Dogville também aborda o homem enquanto ser individual, regado por desejos e vontades vastas e variadas e como ele faz de tudo para alcançar o seu objetivo sem se preocupar com o próximo. Ironicamente, o único que não abusa de Grace é próprio Tom, o qual ela afirmava amar e vice-versa. Mas esse detalhe é ínfimo se comparado ao desfecho de Dogville que assume um tom macabro e super irreverente. Vejo até um tom religioso cristão nos diálogos finais entre Grace e seu pai, aliás uma ironização ao discurso cristão no que tange à misericórdia divina em relação ao homem. Vemos, inicialmente, Grace pedindo a seu pai para ter misericórdia daquela gente (o mesmo que Jesus Cristo pediu a Deus quanto fora crucificado), mas logo em seguida, somos arrebatados por um final impressionante como uma resposta à pergunta: Misericórdia para que? O homem é ruim por natureza, já teve muitas chances para se tornar um ser bom e não merece mais nenhum fio de misericórdia.
Finalmente, a última cena do filme vem fazer uma comparação entre o homem e um cão, ou melhor, ela coloca homem e cão em patamares distintos, pois o cão Moises é posto acima do homem a partir do momento que se torna o único ser digno de misericórdia na pequena Dogville. Penso também que Dogville é uma metonímia de nossa sociedade, pois a produção toma uma amostragem do todo (a sociedade) para poder representá-la de maneira nua e crua, mostrando como o homem pode estar abaixo de um cão sarnento que briga por um osso descarnado. Em suma, Dogville é uma representação do chamado mundo cão onde vivemos dia após dia.
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