Indiscutivelmente, Cisne Negro é a melhor produção da última década deste século. Disse isso em um fórum aqui do cineplayers e encontrei aliados e “inimigos” ao defender isso. Com um enredo já conhecido, a produção de Aronofsky traz ao público um obra de arte cujo brilho está, em grande parte, ao novo olhar lançado sobre a conhecida obra “Lago dos cisnes”, do famoso compositor russo Thaikovsky.
Contrariamente ao que muitos dizem quanto à originalidade do filme, o que importa, no entanto não é indagar se ele é ou não original (Vejam “Avatar”, por exemplo: não passa de uma retextualização barata do descobrimento do Brasil! É. Isso mesmo. Homens brancos dominando outros povos com culturas diferentes para explorar-lhes. E de quebra ainda há um romancezinho igualmente barateado!). Bem. Voltemos ao filme em questão. Como dizia, Cisne Negro, recebeu inúmeras críticas quanto à sua originalidade, sendo comparado a “Repulsa ao sexo”, principalmente, dentre outros filmes. Outros levantam bandeira dizendo que a produção é mediana, pois não permite que o telespectador se abstraia em função de um enredo demasiadamente arquitetado e planejado. Ora, qual o conceito de abstração em questão?
Por falar em enredo, vamos a ele. Nina (magnificante interpretada por Natalie Portman) é uma dedicada bailarina de uma companhia de balé comandada pelo exigente e, segundo Nina, perfeito ex-bailarino Thomas Leroy (Vincent Cassel). A companhia estreará uma nova temporada do clássico lago dos cisnes retextualizado por Thomas que, segundo suas palavras, já é uma história que todos conhecem. Nessa estreia, haverá também a escolha de uma das bailarinas para o papel central: a rainha dos cisnes. Papel este cobiçada por inúmeras bailarinas que dariam a vida por ele. Nina, a bailarina dedicada, centrada, que busca a perfeição sente que essa é sua chance de ganhar o papel da sua vida.
Feita a divulgação de que uma nova rainha será escolhida, iniciam-se os testes comandados por Thomas para a escolha da bailarina que seja capaz de dar vida tanto ao cisne negro, quanto ao cisne branco. É nesse ponto que o filme adquire grandiosidade eloquente. Isso porque, assim como no original, Lago dos cisnes, existe um duelo mortal entre o bem e o mal, o puro e o devasso, o desejo e a repressão desse desejo interpretado, respectivamente, por Odette e Odile. Precisamente, esse é o ponto nevrálgico de Cisne negro, pois enquanto em Lago dos cisnes existem duas personagens, que encarnam somente o MAL e a outra somente o BEM, em Cisne Negro, essa dicotomia é tensionada, potencializada, pois uma única bailarina dará vida tanto ao cisne negro, quanto ao cisne branco. É uma espécie de rompimento dicotômico em que bem e mal interpenetram-se e não se sabe em que ponto um começa e o outro termina.
Durante os testes, Nina mostra-se perfeita para interpretar o cisne branco. Isso porque Nina é o próprio cisne branco. Ela é extremamente contida, dócil, pura e irritantemente dedicada. No entanto, na hora de incorporar o cisne negro é que surgem as complicações que são logo percebidas por Thomas que critica Nina duramente. Dar vida ao cisne negro está muito além das técnicas precisas do balé, de sua árdua rotina de treinamento exaustivo para que se alcance a perfeição. O cisne negro representa, em boa linguagem psicanalítica, o inconsciente, os desejos reais, reprimidos e recalcados. E por isso mesmo, precisa ser devasso, provocante, sedutor. Atributos esses que são duramente cobrados por Thomas que sai aos berros com Nina dizendo que ela precisa seduzir o público, transcender as técnicas do balé que, se não forem usadas a serviço desse efeito, de nada valem, pois são apenas movimentos mortos, frígidos e opacos que qualquer bailarina pode realizar após alguns anos de treinamento.
Ao lado dos ensaios, e Nina já escolhida para ser a rainha dos cisnes, inicia-se a saga da bailarina para se tornar o cisne negro. Para tanto, a direção do filme, juntamente com todas as equipes de apoio, tem papel fundamental para alocar na produção a ideia do duplo presente nos dois cisnes. As imagens criadas para aludir a essa ideia são bárbaras. Nina possui comportamentos muito recalcados e isso é expresso na magnifica atuação de Natalie Portman que constroi para sua personagem um semblante sofrido, contido que beira a quase descompesação (vale a pena notar o semblante de Nina). Além disso, Nina, que mesmo já sendo bastante adulta, é duramente vigiada pela mãe que não permite a ela trancar a porta do próprio quarto e nem ter uma vida autônoma. O próprio quarto de Nina possui uma construção que está a serviço do efeito de infantilização da personagem. É um quarto cheio de bonecas e ursinhos de pelúcia, com tons brancos e rosas que são bem típicos de quartos de garotinhas de doze anos.
Outro ponto bárbaro no filme são os espelhamentos. Não há como não mencioná-los. Aliás, a ideia de espelhamento que perpassa todo o filme é uma estratégia para evidenciar o caráter esquizofrênico que tomará conta de Nina. Ela passa a ter alucinações desde que é escalada para o papel de rainha dos cisnes. Começa a se sentir perseguida e, com a chegada de uma nova bailarina à companhia, Lily (Mila Kunis) vê-se outra grande estratégia de representação simbólica impressa ao filme por Aronofsky. Isso porque Lily pode ser entendida como o alterego de Nina. Alterego esse que se evidencia tanto fisicamente quanto caracteristicamente. Ao contrário de Nina, Lily é naturalemente sedutora, envolvente e espontânea e configura-se uma ameaça à Nina quanto ao papel do cisne negro. Após um olhar mais atento, o telespectador perceberá a intencional associação entre Nina e Lily (Odette/Odile). Aliás, interessante notar o significado do nome Nina. Significa aquela que trabalha incansavelmente e possui muita disciplina, ao passo que Lily está associada ao lírio e à deusa da mitologia grega, Afrodite (símbolo do erotismo e fertilidade).
Esse jogo criado por Aronofsky permite também uma leitura para além do que é dito no filme. Há uma encenação da condição dúbia do ser humano que é, simultaneamente, a representação do bem e do mal. Dessa forma, enquanto Nina luta consigo mesma para deixar transparecer o cisne negro que permanece adormecido dentro de si, os sintomas dessa batalha logo são evidenciados por alucinações que ganham diferentes graus ao longo do filme. Bons exemplos são as cenas em que Nina vê Thomas possuindo Lily na companhia. Na verdade, se considerarmos Lily como uma cisão de Nina, o lado devasso, Nina vê é a si mesma sendo possuída pelo envolvente Thomas. Outra cena bastante reveladora da insurreição interna travada entre os cisnes (branco e negro), que habitam Nina, evidencia-se na cena de sexo entre Lily e Nina após uma bebedeira. Mais ainda, Nina vê-se transando consigo mesmo numa cena bastante provocante e carregada de erotismo. Mais uma prova da batalha enfrentada pela rainha do lago.
Finalmente, chega o dia da apresentação que pode ser entendida como a exteriorização do embate travado entre Nina consigo mesma. Após levantar atrasada para a apresentação, Nina vai direto para a companhia onde irá se preparar para sua grande estréia. Nesse momento ela já está bastante eufórica e as alucinações que a perseguem parecem mais reais do que nunca, como a cena em que ela se vê transformando em cisne negro, com penugens negras saindo de suas costas (perto da omoplata), a vermelhidão de seus olhos e a sensação de está, literalmente, tendo o corpo partido, quebrado.
A GRANDE APRESENTAÇÃO: DA PUREZA À DEVASSIDÃO
Nesse momento, minutos que precedem a grande apresentação, os dois cisnes lutam violentamente para ver qual deles irá vencer. Em cena, o primeiro cisne é o branco: plácido, pueril, com movimentos contidos, olhar esgarçado e sofrido. Posteriormente, no camarim, Nina, literalmente esquizofreniza-se, e vê-se diante da outra Nina, possuída pelo cisne negro, ao se olhar no espelho. Em luta travada entre elas, Nina quebra o espelho e crava um dos cacos na barriga de sua rival, matando-a.
Novamente em cena, é hora de o cisne negro entrar em ação. Magistralmente, Nina dá vida a ele, ela torna-se verdadeiramente sensual, devassa, envolvente e consegue arrancar da platéia aplausos ovacionados. Ao retornar ao camarim para se transformar em cisne branco e fechar a apresentação, Nina não encontra o corpo de sua rival que ela pensou ter matado. Nesse momento, o telespectador entende que na verdade Nina havia travado uma batalha física consigo mesma e que o caco de espelho estava cravado em sua própria barriga. É como se Aronofsky tivesse concretizado a metáfora do cisne negro e do cisne branco. Após isso, Nina, finalmente, consegue finalizar a grande guerra que foi travada dentro de si e, dilacerada pelos resquícios e cacos desse embate, volta para o último ato da apresentação: a morte do cisne branco. Depois de belos passos de balé intensamente executados, o cisne branco prepara-se para se atirar do penhasco – cena fantástica – ao se atirar, com movimentos lentos, vemos Nina suspirar com satisfação por ter conseguido dar vida aos dois cisnes. Ao cair no colchão atrás do palco, ela escuta o delírio do público e recebe os parabéns de todos da companhia, inclusive do severo Thomas. Deitada no colchão, delirando pela façanha, escutamos a satisfatória fala de Nina que, ao ser indagada por Thomas sobre o sangue de sua barriga, ela diz entredentes: “eu me senti... e após uma pausa, completa sua fala: eu me senti perfeita.”
Essa fala é arrepiante. Nina experimenta a perfeição que tanto buscou durante anos de trabalho árduo e dedicado. E para além disso, o espectador quase tem orgasmos múltiplos ao ver essa cena que encerra essa magnífica obra cinematográfica interpretada de maneira brilhante por Natalie Portman.
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