Em 10 de julho, saíram os indicados ao Emmy Award 2014 – o Oscar da televisão norte-americana. A HBO, canal de TV dos Estados Unidos, liderou as indicações ao prêmio pelo 14º ano consecutivo, emplacando 99 nomeações para conteúdos originais e outras 17 para conteúdos distribuídos com exclusividade na América Latina. Entre as produções que mais receberam indicações estão a série “Game of Thrones”, que lidera com 19 indicações, e o telefilme The Normal Heart, que tem 16.
Dirigido por Ryan Murphy (Comer, Rezar, Amar e das séries "Glee” e "American Horror Story"), “The Normal Heart” é baseado na peça autobiográfica de Larry Kramer, lançada em 1985 e vencedora de três prêmios Tony – a premiação mais importante do teatro. A produção aborda os primeiros anos da Aids nos Estados Unidos, quando a doença ainda era um mistério e conhecida como o “câncer gay”. O filme, feito exclusivamente para a televisão, estreou em 31 de maio na HBO e arrancou elogios – e lágrimas – da crítica e do público. A produção é favorita ao prêmio de Melhor Filme para TV e recebeu seis indicações de elenco, além de lembranças nas categorias de Direção, Roteiro e prêmios técnicos.
Cinematograficamente falando, “The Normal Heart” é excelente. Direção afiada (de longe o melhor trabalho de Ryan Murphy), texto que não dá margem para vitimização da comunidade gay – assinado pelo próprio Larry Murphy, aliás – e atuações corajosas e inspiradas de todo o elenco são alguns destaques. Mas os méritos de “The Normal Heart” não se limitam à qualidade cinematográfica da obra. O filme, lançado mais de 30 anos após os primeiros casos da Aids nos Estados Unidos, reacende um debate que permanece atual e urgente. Hoje, a epidemia já está mais controlada, a doença já não está mais tão estigmatizada, já há mais informações disponíveis à população e até meios para se garantir qualidade de vida maior para pessoas infectadas com HIV. Mas e a cura? Nem sinal dela.
Dados recentes divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU) mostram que houve queda de quase 1/3 nas mortes causadas por complicações da Aids na última década. No Brasil, no entanto, as notícias não são boas. De acordo com o relatório, o número de infecções pelo vírus HIV aumentou 11% de 2005 a 2013. Os dados da ONU vão ao encontro dos números oficiais do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, do governo federal brasileiro, responsável pelo Boletim Epidemiológico da Aids no Brasil. Segundo o último relatório, de dezembro de 2013, houve aumento de 2% no número de infecções pelo vírus causador da Aids – principalmente entre a população de 15 a 24 anos, cuja prevalência do vírus aumentou de 8,1 para 11,3 a cada 100 mil habitantes. Entre os homens que fazem sexo com outros homens, somente no ano de 2012 houve aumento de 22% no número de casos registrados no Serviço Nacional de Agravos de Notificação (SINAN).
O atual cenário da Aids no Brasil é alvo de preocupações por parte também da Organização Mundial da Saúde (OMS). Recentemente, o órgão recomendou publicamente que homens gays e bissexuais façam uso de medicamentos antirretrovirais como mais uma forma de prevenção ao HIV, além dos preservativos. Essa medida faz parte das metas estabelecidas pela OMS para controle da epidemia de Aids em 2014 e 2015, em que o uso de antirretrovirais como forma de proteção não se restringe somente a homens gays e bissexuais como também abraça a todos os grupos que adotam comportamento de risco. Mas a notícia reacendeu uma polêmica antiga: afinal, existem grupos de risco para a contaminação pelo vírus causador da Aids ou existe, de fato, um comportamento considerado de risco para a infecção por HIV? A prática do sexo anal desprotegido é conhecidamente a forma mais comum de se contrair o vírus, mas ela não é exclusiva do sexo entre homens. Se isso não é mais novidade para nós, pelo menos na época retratada em “The Normal Heart” isso era quase um consenso entre a população – inclusive entre os próprios homossexuais.
O fato é que a “doença misteriosa” não recebeu a atenção que merecia quando foi registrado o primeiro caso de morte, em 1981. Foram precisos quatro anos para que o governo norte-americano se posicionasse em relação à doença, que até o final de 1986 fez 24.559 mortes. A luta da militância LGBT por atendimento médico é relatada em “The Normal Heart”, que destaca a dificuldade do grupo em conseguir convencer as autoridades de que a doença estaria matando cada vez mais pessoas. As dúvidas que pairavam sobre o misterioso vírus, aliás, também são mostradas no filme. Afinal, como se pega a doença? Tudo indicava que o meio mais provável de contágio era relação sexual. O que os gays deveriam fazer, então? Parar de transar? A liberdade sexual, conquistada sob amarras e esforços durante a década de 70, ainda era muito recente. Deveriam os gays então abrir mão de algo que foi conquistado a duras penas por uma doença que ninguém sabia ao certo do que se tratava? Ao mesmo tempo em que o vírus se disseminava por Nova York, o epicentro da Aids nos Estados Unidos, Emma Brookner, médica interpretada por Julia Roberts, tratava sua batalha pessoal por verbas para dar continuidade às pesquisas direcionadas ao misterioso vírus.
A dor da perda e a luta dos ativistas por atenção do governo à epidemia levam a uma enxurrada de lágrimas, marcada por cenas tocantes e muito tristes. Em um dos momentos mais emocionantes do filme, o personagem do ótimo Jim Parsons (que interpreta o Sheldon de “The Big Bang Theory”), durante mais um funeral, indaga aos presentes: “por que eles nos deixam morrer? Por que ninguém está nos ajudando?”. A resposta foi ele mesmo que deu: “eles simplesmente não gostam de nós”.
“The Normal Heart” é um verdadeiro soco no estômago, um filme que mostra o lado cruel e desumano dos primeiros anos da Aids nos Estados Unidos e que merece todos os elogios que vem recebendo. O ator Mark Ruffalo, em especial, merece destaque por sua interpretação corajosa e brilhante. Ele interpreta o protagonista Ned Weeks, que fundou uma firma de advocacia que promete atender homens homossexuais que procuram ajuda médica.
“The Normal Heart” manda um recado à geração atual, que cresceu quando a doença já estava sob controle, que não viu ídolos morrerem em decorrência da infecção por HIV e que pode pensar que o perigo já passou. A Aids está aí e ainda não há cura. Apesar de existir tratamento capaz de garantir qualidade de vida maior para os pacientes, todas as pessoas infectadas com o HIV eventualmente morrerão de complicações decorrentes da Aids. De acordo com o último Boletim Epidemiológico, aproximadamente 718 mil pessoas vivem com o vírus atualmente no Brasil e aproximadamente 1,3 milhão de pessoas morreram ano passado por causa do vírus em todo o mundo.
Crítica sensacional, parabéns!