Um tema "tabu", censurado por muitos, enfrentados por poucos. Mike Leigh é corajoso o suficiente para transpor às telas o polêmico tema do aborto, e fazê-lo com excelência.
O aborto é um tema que rendeu e continua a render inúmeras discussões ao redor do mundo. Há quem defenda e quem condene essa prática, explicando seus argumentados, usando como base a religião, a ética, as leis. O aborto é um tema altamente censurado por grande parte da população que se diz fiel à Igreja, mas que com o passar dos anos não deixou ferir a sua obtusidade em não acompanhar a evolução tecnológica e social, que hoje aflui pelo mundo a fora. As discussões sobre o aborto talvez nunca cessem, uma vez que nenhum dos lados dá o braço a torcer. Mas é em meio a tanta polêmica que O Segredo de Vera Drake aparece para, mesmo sem o intuito de convencer quaisquer das partes, com um olhar diferenciado sobre a prática do aborto, esclarecendo os dois lados que realmente devem ser levados em consideração: as leis do homem e o desespero de quem sofre pela condenação. Um filme absolutamente independente e único de opiniões de uma época onde as mulheres eram condenadas e privadas de vários direitos, direitos reservados unicamente aos homens.
Vera Drake (Imelda Staunton) é uma mulher inglesa humilde dos anos 50, que mora em uma pequena casa com seu marido e dois filhos. Ela, apesar de ser pobre, é amada por muitos e querida por todos, e trabalha duro para poder levar um pouco que fosse para casa. Além de trabalhar em casas de famílias como faxineira, ela cuida de sua vizinha e de sua mãe doentes todos os dias. Mas possui um segredo: Vera ajuda mulheres que não quiseram engravidar a abortarem, uma prática ilegal e considerada um crime na Inglaterra na época. Seus métodos, tão ilegais quanto o próprio ato de abortar, sempre deram certo. Mas é quando uma menina acaba passando mal e quase morre que as autoridades chegam ao nome de Vera Drake. A partir daí, a sua e vida de todos ao redor vão mudar, para pior.
Apesar de estar cometendo um crime, Vera não fazia idéia de o que estava fazendo fosse levar uma mulher ao estado gravíssimo e muito próximo da morte. Vera afirma que fazia tudo aquilo com o intuito de ajudar as mulheres, dar a elas uma segunda chance, uma ajuda que ela um dia precisou e ninguém se ofereceu para dá-la. A comoção e emotividade presente no roteiro do filme durante toda a duração é responsável principalmente pela fantástica interpretação de Imelda Staunton, que carrega nas costas um papel difícil e muito complexo. Ela dá à sua personagem o seu tom meigo de dialogar, que coube como uma luva para a mulher que o diretor Mike Leigh pensou desde o início, e sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz e sua vitória no BAFTA na mesma categoria levaram a atriz a um catamar mais alto de talento e competência.
Mike Leigh só é ofuscado pela atuação de Staunton. Sua direção impecável e seu roteiro impagável rendem ao filme minutos de grande tensão, drama e comoção. Ao mesmo tempo que sabemos que Vera está fazendo um ato terminantemente ilegal, não temos como ter raiva dela. Ela poderia significar a vilã da história, mas o verdadeiro trunfo do roteiro é justamente esse, tratar Drake como uma mulher simples e humilde, que nunca fez mal a ninguém e se fez dessa vez foi sem a menor das intenções. O fato é que torcemos para a personagem espacar da prisão durante todo o processo, e isso talvez seja o principal ponto positivo do roteiro, aproveitar os sentimentos dos personagens ao máximo e aprofundar a história em cima deles.
Leigh também administra a narrativa com eficiência e profundidamente, aproveitando e extraindo ao máximo as interpretações de um elenco absolutamente inglês e competente. Ele comanda todas as áreas da produção com afinco, os figurinos, os cenários realistas, a fotografia acinzentada, a maquiagem correta, tudo isso é resultado do trabalho de um diretor de carreira promissora e de talento inegável.
Como já adiantei, a produção de arte de O Segredo de Vera Drake é realista e muito bem elaborada. Desde a maquiagem, que embora simples mostra as linhas da pobreza e o charme da época. Os figurinos, livremente inspirados nos trajes dos anos 50 e igualmente a direção de arte dão um toque de classe e ao mesmo tempo de simplicidade ao cotidiano burguês da época.
O elenco em si, é brilhante, destaca-se obviamente Imelda Staunton, mas todos os intérpretes tem atuações memoráveis e brilhantes. Podemos adiantar também a surpreendente Sally Hawkins, que está no mais recente trabalho de Leigh, Simplismente Feliz. Sua interpretação é calada, singela e muito emocionante, a sua personagem transborda carisma e meigice por onde anda e seus olhos brilham como nenhum outro. Até mesmo a rápida participação de Jim Broadbent é produtiva, o vencedor do Oscar por Iris, aparece somente como o Juíz, mas já é suficiente para que seu talento seja apreciado mais uma vez, nem que seja por apenas alguns minutos separados por cenas.
O Segredo de Vera Drake é um filme simples, muito bem produzido e brilhantemente dirigido, escrito e interpretado. É comovente ao extremo, mas que não escorrega em suas pretenções. Um diretor como Mike Leigh que apresenta ao público um outro olhar sobre o aborto é difícil de se encontrar. Filme para ver, apreciar e admirar.
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