Lincoln estreou nos Estados Unidos na sexta-feira seguinte às eleições norte-americanas, nas quais Barack Obama foi eleito para mais um mandato de quatro anos. Sabe-se que o diretor Steven Spielberg e o ator Daniel Day-Lewis foram alguns dos principais doadores da campanha do presidente reeleito, e dias após sua vitória no pleito, houve uma exibição exclusiva de “Lincoln” na Casa Branca – apenas para Obama, sua família e convidados.
Não à toa, o Abraham Lincoln de Spielberg tem um “quê” do atual presidente dos Estados Unidos. Embora de partidos diferentes – Lincoln era republicano e Obama é democrata -, ambos são frontrunners na luta por uma causa nobre. Em sua época, o “vermelho” Lincoln bateu de frente com a elite do Partido Republicano para proibir a escravidão nos Estados Unidos e, hoje, o “azul” Obama é declaradamente a favor da união entre casais do mesmo sexo.
O democrata Steven Spielberg, aliás, não esconde seus ideais políticos em “Lincoln”, e muitas das cenas em que a abolição da escravatura é discutida são óbvias referências aos atuais debates envolvendo a legalização do casamento gay. Ora, Spielberg é assumidamente a favor da causa e Tony Kushner, o roteirista do filme, é assumidamente homossexual. Logo, o roteiro faz emergir uma série de ganchos que imediatamente remetem aos discursos proferidos pelos atuais membros do Tea Party – a ala mais conservadora do Partido Republicano.
Este é o “Lincoln” nas entrelinhas. Em sua superfície, é um filme bem diferente daqueles que Spielberg está acostumado a fazer. Aqui, o diretor poupa o espectador de seu costumeiro sentimentalismo (o mesmo que arruinou O Resgate do Soldado Ryan) e entrega uma produção longa (150 minutos), seca e verborrágica. O diretor quase perde o fio da meada logo no início, quando apresenta dúzias de personagens em um espaço curtíssimo de tempo e joga informações demais para o público, seja por meio de diálogos, inserções ou discursos de personagens. “Lincoln” demora a engrenar, e talvez não tenha tido gás o suficiente para alcançar o status de “obra-prima”, mas certamente não decepciona. Na verdade, até surpreende. Quem poderia esperar um filme tão seco e sóbrio de Steven Spielberg?
Mas em pelo menos um aspecto, “Lincoln” se parece – e muito – com outras produções do cineasta norte-americano. Ele é conhecido por filmes que prezam pelo trabalho impecável da equipe artística, e “Lincoln” é a prova viva de que capricho sai caro, mas o resultado é recompensador. Ao todo, foram 12 indicações ao Oscar – muitas delas técnicas. E, apesar de só ter vencido em duas categorias (Melhor Ator para Day-Lewis e Melhor Direção de Arte), não há como negar que o trabalho de reconstituição de época em “Lincoln” é absurdamente bem feito.
E já que falei nele, vou aproveitar o gancho para fazer chover mais um pouquinho no molhado. Abraham Lincoln é mais uma metamorfose de Daniel Day-Lewis, o único ator da história do cinema a vencer três Oscars como protagonista. O intérprete britânico está simplesmente idêntico ao antigo presidente norte-americano, e o trabalho de maquiagem o deixou praticamente a reencarnação do homem. No entanto, sua luz já foi mais forte, e há quem diga que outros mereciam mais do que ele. Eu também acho, se querem saber, mas sua vitória não deixa de ser justa. Quanto ao restante do elenco, merecem especial atenção os que também foram lembrados com indicações ao Oscar. Sally Field, que já tem duas estatuetas douradas enfeitando a prateleira, interpreta Mary Todd Lincoln, a primeira-dama, e concorreu a Melhor Atriz Coadjuvante. Por quê? Ainda estou querendo saber também. Field aparece pouquíssimo e nas poucas vezes em que dá o ar da graça sua participação é absolutamente dispensável. Por ser uma grande atriz, não fez feio, mas também fez nada de tão extraordinário a ponto de ser considerada a principal concorrente de Anne Hathaway, que venceu o Oscar por Os Miseráveis. Quem realmente merecia a indicação e foi considerado até o último instante como o franco favorito a levar o prêmio é Tommy Lee Jones, que brilhou como o deputado Thaddeus Stevens e concorreu como Melhor Ator Coadjuvante, mas acabou perdendo para Christoph Waltz.
Lincoln é um filme luxuoso, sóbrio, lento, e é também uma importante homenagem de Spielberg à palavra escrita – aquela que de fato tem algum valor real na modernidade. O longa também é uma ode à palavra oral, um dos talentos de Abraham Lincoln tanto para contar histórias quanto para proferir discursos a multidões. Spielberg soube como fazer o melhor uso possível das ferramentas que tinha em mãos, construiu belas cenas e distanciou-se um pouco de seus principais defeitos. Lincoln é a prova de que a metamorfose é um fenômeno frequente também no Cinema, e de que um cineasta pode sempre se reinventar.
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