O resquício de uma mancha na história da humanidade contada com sensibilidade e segurança por um dos diretores mais conceituados do cinema moderno. Invictus é uma obra menor de Clint Eastwood, mas que mesmo assim tem como principal aspecto o trabalho de direção daquele que sabe relatar, como ninguém, um conto sobre o perdão, a generosidade e o ser humano.
Ao contrário do que muitos possam pensar, "Invictus" não fala nem sobre o apartheid, nem sobre Nelson Mandela. Não é um filme que trata esse episódio "negro" (e irônico) com olhares trágicos do sofrimento e barbárie, mas sim uma obra que tem como único foco a África do Sul pós-segregação racial. O espectador entra exatamente no instante em que Mandela, o popular Madiba, é recém-libertado da prisão, na qual ficou enclausurado durante vinte e sete anos, para depois ser eleito o primeiro presidente negro da história da África do Sul. A partir desse ponto, Clint Eastwood não se preocupa em mostrar apenas os resquícios do apartheid nos sul-africanos, mas sim o que Mandela foi capaz de fazer para tornar aquele país que foi dividido por raças durante tantos anos, uma nação de pessoas unificada. Para mudar o pensamento de uma população que foi contaminada com o racismo e ignorância desde 1948, essa não era lá uma tarefa que possa ser considerada fácil para um presidente recém-eleito. Como líder, Mandela era uma figura emblemática, respeitada tanto por aqueles que sofreram nas mãos dos segregados quanto por aqueles que aceitaram a mudança. Mandela ficou no poder durante cinco anos, e em pouco tempo conseguiu realizar um feito que era considerado por muitos impossível de acontecer. O ex-líder rebelde, que esteve na prisão por quase trinta anos, aprendeu a perdoar aqueles que o colocaram lá, e como lição de vida, decidiu que muito se poderia fazer para mudar o que restou daquela realidade infame da qual foi vítima. Afinal, mudar o pensamento de um povo não é uma tarefa fácil desde os tempos do Império Romano do Ocidente, mas que fez Mandela para conseguir essa façanha? Nada além de pegar o rugby, que como esporte para os sul-africanos (até então somente para os brancos) é como o futebol para os brasileiros, como arma para transformar a sociedade.
E é aí que começa a principal trama da história. Mandela, preocupado com o povo que ainda encontrava diferenças entre as raças, decidiu pegar o time de rugby nacional, desacreditado depois de tantas derrotas humilhantes, para reunifir a nação. Após chamar o capitão do time para um chá, Mandela procura instruir-lhe a como enchergar esperança no fim do túnel, como o próprio fizera durante os anos em que esteve encarcerado. Acontece que existe um outro problema que envolve o time nacional de rugby, fora o fato de estar totalmente fora de entrosamento e capacidade para sair vitorioso de um jogo sequer. É um time composto basicamente por brancos, o qual muitos negros ainda encontram vestígios do apartheid. O único jogador negro da equipe, Chelsea, é visto como um ídolo para a garotada pobre dos subúrbios das principais cidades da África do Sul. Mandela usa desse e outros artifícios para trazer mais e mais torcedores, mostrar-lhes a esperança e passar a mensagem que a perseverança de ser bem sucedido é conquistada depois de muito esforço e garra. E ele consegue.
Eastwood passa todos esses pensamentos e ações de forma muito sutil e reflexiva para o espectador. Como excelente diretor que é, Clint sabe como fazer da câmera um instrumento capaz de transformar pontos de vista. E em todas as cenas, até aquelas que contam com situações embaraçosas (como o rasante do avião no campo de rugby e outros detalhes que envolvem a final do Copa do Mundo), Eastwood mostra que sabe fazer cinema e "Invictus", ainda que um trabalho menor perto dos outros, é mais um para ser acrescentado à lista de bons filmes do diretor.
No que diz respeito às interpretações, o destaque, evidentemente, fica por conta de Morgan Freeman. Se o ator, com uma maquiagem muito breve, já ficara fenotipicamente parecido com Nelson Mandela, seu jeito, olhar e gestos o tornam ainda mais idêntico ao líder sul-africano. Tudo isso faz da atuação de Freeman um show a parte, com grandes momentos e outros que dão a entender que o ator leva o personagem no botão automático. Nada que estrague o excelente trabalho que o ator faz, condecorando-o à indicação ao Oscar de Melhor Ator. Outro membro do elenco que também vai marcar presença na cerimônia de entrega dos Oscars é Matt Damon, só que este nós não sabemos o porquê de estar lá. Eu, na verdade, não faço a menor ideia. Se for somente pelo sotaque forçado que o ator entrega ao seu personagem de capitão da seleção nacional de rugby, devo confessar que muitos seriam capazes de fazer melhor. Damon não entrega nem sequer uma boa atuação. Seu personagem, que tem determinada importância, não é bem desenvolvido no roteiro e só é mostrado dentro do limiar do rugby.
Falando em roteiro, esse é o único problema do filme, o que faz dele, infelizmente, uma obra que poderia ser melhor apreciada e aproveitada. Escrito por Anthony Peckham, que também está em cartaz pelo texto de Sherlock Holmes, o script de 'Invictus' é baseado no livro de John Carlin, que também tem bases em acontecimentos verídicos. Assim, Peckham perde uma excelente oportunidade de conduzir o roteiro com fluidez e acertos, já que o filme se perde um pouco nesse aspecto após o início da Copa Mundial. O final, ainda que contenha cenas bastantes duvidosas, consegue manter o espectador vivo, como se o próprio estivesse nas arquibancadas do estádio de rugby, torcendo para a seleção sul-africana derrotar os monstros neo-zelandeses. E aqui Clint é mais uma vez brilhante, pois faz exatamente aquilo que muitos diretores ainda se mostram incapazes de fazer: deixar o espectador tão próximo dos personagens que tocá-los de alguma maneira se torna possível.
"Invictus" também é o nome de um poema. No filme, ele é o poema que Mandela escreve para François, o capitão do time de rugby, e que termina o filme no monólogo de Freeman. É este, em sua última estrofe:
"It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
Enfim, Invictus é um filme que fala sobre diversos temas. O esporte, o perdão e a esperança são todos tratados com fidelidade e compaixão por Clint Eastwood, que dirige com competência mais uma vez, transformando o resquício de uma mancha na história da humanidade em uma lição de vida sincera e coerente. É um trabalho que poderia ser melhor não fosse o roteiro equivocado, mas que ainda assim entra como um bom programa, contando com a excelente interpretação de Morgan Freeman. Recomendado.
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