"A guerra é uma droga". A guerra, no seu sentido mais amplo, vira poesia em "The Hurt Locker", poderoso filme de Kathryn Bigelow.
Se teve um assunto que rendeu nos primeiros anos do século XXI, foi a Guerra do Iraque. Logo, muitos filmes vieram a tratar do assunto, cada um de uma maneira diferente. Já posso adiantar que é difícil algum deles ser melhor que Guerra ao Terror, uma verdadeira avalanche de prêmios, de orçamento barato, e que recentemente abocanhou nove indicações no Oscar.
Desde Apocalypse Now, que mais parece ter um estudo psicológico dos soldados americanos durante a Guerra do Vietnã do que uma história cinematográfica propriamente dita, não foi filmado um filme de guerra tão bom e meticulosamente perturbador. Não existem adjetivos suficientes que possam definir a direção de Kathryn Bigelow, sem dúvidas, o trabalho mais competente e extraordinário por trás das câmeras em 2009.
"The Hurt Locker" é uma expressão que denota uma situação de perigo e tensão extremos. Traduzindo no filme, é exatamente disso que o roteiro de Mark Boal trata. Um esquadrão do exército americano, que tem como especialidade desarmar bombas, conta os dias para o rodízio. Logo eles poderão estar fora daquele inferno que é o Iraque. Enquanto isso não acontece, eles devem exercer o seu ofício com cautela, paciência e acima de tudo, coragem. Praticamente todos os dias o esquadrão anti-bombas da U.S. Army é mandado para tirar mais um explosivo de funcionamento. E é em uma dessas "aventuras" que o filme começa.
Arrisco a dizer que seja uma das cenas mais bem filmadas da década, com tensão e maestria inquestionáveis no que diz respeito à sua condução. O soldado é obrigado a vestir uma roupa quente e pesada que serve como proteção. Evidentemente, protege de artefatos pequenos que, ao explodirem, correm o risco de atingir o olho do soldado ou de cortar o pescoço do dele. Toda essa proteção, no entanto, é extremamente desconfortável e escaldante. E com o sol ardente do Oriente Médio, fica ainda mais difícil realizar a tarefa com precisão e cautela. Tiro aqui, logo na primeira cena de 'Guerra ao Terror', o meu chapéu para o trabalho de Bigelow. É impressionante como a diretora é capaz de transmitir a sensação de medo, sufocamento e tensão por meio de uma câmera. Os personagens não demonstram contato com o espectador em momento algum, demonstrado frieza. Estão sempre distantes, procurando se concentrar ao máximo no que estão fazendo. Até que algo dá errado. E o cara morre.
Essa sequência, filmada em slow motion e com perfeita captação dos detalhes mais singelos possíveis, é brilhante. Excepcionalmente bem filmada, impressionante e arrebatadora. Um início que serve como introdução para um filme que, com cerca de 11 milhões de dólares orçamentados, pôde fazer tanto com a câmera e o coração na mão.
Com a morte do desarmador de bombas, entra em cena o sargento William James, intepretado com garra por Jeremy Renner. Destemido, não sabemos qual adjetivo lhe cabe melhor: corajoso ou louco. Ele veio para substituir o soldado morto e como qualquer membro do exército, ele não quer morrer. Mas se tem que realizar o seu trabalho, quer fazê-lo da melhor forma possível. Então, abrindo mão de proteção, de fones de ouvido e capacete, James mostra para o que veio.
Renner, neste ponto, é sensacional. Sua atuação pode não parecer nada de mais, mas se analisada mais profundamente, ele é a pura e fatídica imagem da guerra. William James foi feito para ela, ele deve lutar pela guerra e nem a mulher e o filho nos Estados Unidos são capazes de tirá-lo dessa realidade insana. Tiramos daí a frase inicial, pertubadora e chocante: "A guerra é uma droga". E como uma droga, vicia. E como vicia, é exigida. E James, mais que ninguém, precisa dela.
Bigelow evita cair em discussões políticas a cerca da guerra, e com isso, acerta. O foco de "The Hurt Locker" cai inteiramente sobre os soldados americanos e o modo como eles encaram a realidade fria da guerra. E Bigelow acerta de novo quando nos mostra cenas de absoluto comando de campo. O elenco principal, desconhecido pelo grande público, atinge uma capacidade interpretativa pouco vista. Jeremy Renner, o protagonista que foi indicado ao Oscar, compõe o personagem mais complexo do filme com grande competência. Anthony Mackie, o coadjuvante, faz um trabalho excelente e mostra ao mundo o seu talento, extraído coerentemente por Bigelow.
Eu já falei muito dela, mas é bom ressaltar que Kathryn concorre ao Oscar de Melhor Direção este ano. Falarei mais sobre a premiação depois, mas o fato é que a diretora fez um trabalho tão estupendo, que fica difícil crer que ela ainda não é a vencedora por antecipação. Na mesma categoria, concorre James Cameron, diretor de Avatar e ex-marido de Bigelow. Além disso, ele é seu principal concorrente depois de ter levado o Globo de Ouro. Com a vitória de Kathryn no Sindicato dos Diretores, sendo ela a primeira mulher a realizar tal feito, suas chances no Oscar cresceram muito mais.
E falando nele, 'Guerra ao Terror' concorre em nove categorias. Melhor Filme, Direção, Ator são os destaques. Melhor Roteiro Original, uma categoria que ainda está em aberto, conta com vários roteiros interessantíssimos e talvez o de Mark Boal seja o mais interessante de todos. Os diálogos definitivamente não é o ponto forte do texto de Boal. Seus méritos se concentram completamente na discussão que provoca. Ele não se preocupa em criticar o governo, em fazer indiretas ao sofrimento dos soldados como forma de apelo para a volta deles. Boal se preocupa com o psicológico de cada um dos membros do exército, como funciona a cabeça deles, sem jamais entrar em discussões batidas. O roteiro de "The Hurt Locker" é, portanto, uma poesia da mais autêntica e fiel realidade da guerra. Um texto que ressalta essa droga maldita com realismo extremo.
Entre as indicações técnicas, destacaram-se Fotografia, Montagem, Mixagem e Edição de Som e Trilha Sonora. Não preciso nem dizer que o trabalho do cinematógrafo Barry Ackroyd, que compõe imagens e enquadramentos sufocantes, é mais do que estupendo e que sua vitória no Oscar não seria nenhum um pouco desmerecida. O trabalho de edição dos montadores Chris Innis e Bob Murawski é também um dos pontos fortes da produção. As cenas que captam os detalhes das imagens são tão perfeitas que é difícil deixar de proclamar uma exclamação no meio da sessão. Não há muito o que dizer sobre o trabalho perfeito dos sonoplastas, afinal de contas, 100% do filme contém retoques sonoros da mais alta qualidade e eles nunca pecam com excessos. Além disso, a trilha sonora, tensa e perturbadora de Marco Beltrami e Buck Sanders (que por sinal foi uma surpresa da Academia), consegue manter um equilíbrio perfeito entre a sanidade e a tensão dos personagens.
Enfim, Guerra ao Terror, que vem ganhando tudo o que vê pela frente na temporada de premiações, disponta como franco favorito ao Oscar de Melhor Filme. Um trabalho de direção impecável de Kathryn Bigelow, com excelentes atuações e cenas impactantes, que certamente vai marcar época e ser registrado como um dos melhores filmes de guerra já feitos.
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