Uma obra de arte impressionante.
Parece pouco do que é possível dizer sobre Amadeus, cinebiografia fictícia de um dos compositores mais geniais de todos os tempos, mas é a frase que melhor resume o filme. É verdade que "obra de arte" no cinema significa muito mais do que um desfile deslumbrante de arte cenográfica (como se a iluminação e as locações desta produção já não fossem sublimes). Os dizeres aqui servem para, além de enaltecer o brilhante trabalho do diretor, deixar claro que "Amadeus" não possui destaques. Não é nenhum absurdo colocar todos os aspectos técnicos do filme num mesmo nível de qualidade, uma vez que essa é, e sempre foi, uma das características predominantes do cinema de Milos Forman. Impossível, por exemplo, não se lembrar de Um Estranho no Ninho, uma obra-prima perfeita em todos os seus míseros detalhes. Assim como o filme que rendeu à Forman seu primeiro Oscar, "Amadeus" fica na cabeça daquele que o vê mesmo depois de muito tempo. É um trabalho belíssimo, que prima pela perfeição de cada um de seus aspectos. O resultado final é uma das produções mais ricas e harmônicas que o cinema já viu.
Antes mesmo da imagem aparecer nos primeiros segundos de "Amadeus", a música forte de Mozart já apresenta o restante do filme e mostra o quão impactante serão as sequências seguintes.
"Mozart!"
Ao som do grito, um homem, segurando um candelabro, sobe as escadas apressado.
"Perdoe ao seu assassino!"
A esse homem junta-se outro, que levanta dos degraus onde estava sentado.
"Eu confesso! Eu o matei!"
Juntos, eles correm para o local de onde saem os gritos.
"Sim, eu o matei...Perdão, Mozart!"
Os dois homens chegam à porta do aposento de Antonio Salieri, enquanto este confessa, aos berros, ter matado Mozart. A cena a seguir, ritmada pela música do compositor supostamente assassinado por Salieri, é o encerramento de uma introdução divina e assustadora. A tentativa de suicídio daquele velho frágil e débil o levou para um hospício, onde, já à beira da morte, recebe a visita de um padre.
Ao contrário do que se poderia esperar, Salieri não está moribundo, jogado numa cama, pronto para confessar seus pecados ao padre e morrer em paz. Ele encontra-se sentado em frente ao seu piano, enquanto os outros pacientes do hospício desfilam pelos corredores nus e insanos. Com um ar inatingível, de quem não quer ser incomodado enquanto toca, Salieri mantém a elegância que sempre fez parte de suas características, e mesmo idoso e aparentemente maluco, a figura atual não denuncia sua real personalidade.
Ele se apresenta como aquele que um dia foi o compositor mais famoso da Europa. Porém suas composições são desconhecidas do padre e, pelo o que parece, de boa parte da população de Viena também. Mas eis que ele toca uma outra música, esta que é imediatamente reconhecida pelo sacerdote.Trata-se, nada mais, nada menos do que a 4ª Sinfonia de Wolfgang Amadeus Mozart, um verdadeiro clássico. Dessa forma, Salieri já mostra o desfecho ao espectador. É claro que este ainda não sabe, mas a rápida cena em que o padre reconhece uma obra de Mozart, mas não reconhece duas composições de Salieri, serve como prova de todo o discurso apresentado pelo roteiro de Peter Shaffer. Mas serve, principalmente, para enunciar os conceitos-chave de todos os atos que levarão àquele breve encontro entre o padre e o compositor enfermo.
A partir deste ponto, Antonio Salieri conta como era fascinado por Mozart, e como este era por ele idolatrado e invejado. Desde criança, o menino Antonio ouvia histórias à respeito de uma certa criança que, aos seis anos de idade, já fazia sua primeira turnê pela Europa. Tal inveja, que passa a ser retratada por imagens, palavras e ações durante todo o restante do filme, é alimentada pela religiosidade de Salieri, que rezava continuamente para que Deus concedesse à ele a genialidade necessária para compôr músicas extraordinárias. Ele, que viria a cometer atos impensados nos momentos seguintes, tinha outros motivos além da inveja para justificar seus planos.
Salieri tinha muito talento. Foi o compositor oficial da corte de Viena aos 24 anos. Mas, ele sabia, estava muito longe de ser um tão genial quanto Mozart. Sempre foi seu maior desejo conhecer aquele que todos chamavam de "menino prodígio". Não sabia qual seria o seu rosto, mas imaginava que o talento enorme e a fama estariam estampados em suas feições e refletidos em seus gestos e comportamentos. Mas a surpresa e indignação de Salieri se deu quando este viu Mozart pela primeira vez, jogado ao chão com a namorada, fazendo insinuações sexuais, esbanjando irresponsabilidade e descaso com os demais. Mozart, aquele que tanta inveja despertara em Salieri, não passava de um garoto sem modos e que ainda por cima tinha uma risada débil e nem um pouco discreta. Como Deus pôde escolher um homem tão desprezível e detestável para ser dono de tamanha genialidade? - Salieri se perguntava. Ele jamais compreenderia.
"Amadeus" é uma produção luxuosíssima e quase que totalmente fictícia. Não é um filme fiel à vida de Mozart, como podem pensar alguns. Trata-se de uma cinebiografia livremente inspirada em sua vida, mas sem respeitar valores éticos de personagens e as personalidades individuais de cada um deles. Por exemplo, a história real dá a entender que a rivalidade de Mozart e Salieri de fato existiu, pois ambos eram muito visados na época (Mozart, apesar de hoje ser considerado um gênio, na época era "apenas" um compositor muito bom). Mas há quem diga também que os dois sempre foram muito amigos, uma vez que Salieri jamais desejara fazer mal algum à Mozart. No filme, Antonio aparece na casa de Amadeus, em uma delirante sequência musical, com uma máscara cobrindo-lhe o rosto e o timbre da voz. Na cena, ele pede à Mozart que este lhe escreva um réquiem. Mais tarde o espectador fica sabendo, desta vez pela boca do Salieri mais velho, que este queria que Amadeus compusesse o réquiem de seu próprio funeral. A história verdadeira, por outro lado, conta o episódio em que Mozart realmente recebera a visita de um homem mascarado. Mas este não era seu amigo Antonio Salieri, e sim F. Von Walsegg, um homem que desejava homenagear a memória da mulher morta, mas pretendia levar o crédito pela composição do réquiem.
Uma semana após a morte de Wolfgang Amadeus Mozart, começou-se a suspeitar que ele teria sido envenenado. Mas o fato somente voltou à tona trinta anos mais tarde, já no período do Romantismo. Na época, os românticos adoravam o estilo inovador e ousado de Mozart, mas desprezavam as músicas de Salieri, as quais consideravam antiquadas e simplórias. Foi nesta época que surgiram os primeiros boatos à respeito da participação dele na morte do rival. Porém, tais suspeitas jamais foram comprovadas. É inegável, no entanto, que quem conhece a história de Mozart ainda vive às sombras das causas de sua morte. Assim como o motivo que levou ao seu óbito, não se sabe exatamente onde o corpo do compositor foi enterrado. Sabe-se apenas que ele foi despojado em uma vala comum, uma vez que a família de Mozart não tinha dinheiro para pagar uma vala individual. Mas o local exato jamais foi encontrado, e o fato de não haver nem se quer uma única referência não auxilia em nada na procura do lugar.
Como você pode ver, algumas passagens do filme são comprovadamente reais. Mas o comportamento austero de Mozart também poderia ser discutido, tal como o papel de Salieri dentro do cenário musical. Ao final de "Amadeus", Salieri diz ser o pai de todos os medíocres. Ao contrário do que o texto de Shaffer, baseado na peça teatral de sua autoria, afirma, Salieri nunca foi um compositor medíocre. Há até quem diga que o invejoso na realidade foi Mozart, uma vez que este jamais teve as mesmas proximidades e possibilidades que o rival, principalmente no que diz respeito às relações que Salieri tinha com a corte austríaca.
Mas "Amadeus" é um filme que consegue ir muito além de sua história. Esta, por mais interessante que seja, deve dividir as atenções com vários outros elementos da produção, todos dignos de destaque. É preciso que se comente, nem que por um único instante, a qualidade técnica do filme. Milos Forman, especialista em unir todos os aspectos técnicos de seus trabalhos com os elementos mais importantes, como o roteiro e as atuações, optou por uma reconstrução de época perfeita, porém com certas extravagâncias, todas milimetricamente medidas para ficar exatamente como ele queria. Existe muita cor em "Amadeus", cujos cenários e figurinos adquirem um ar dionisíaco aos olhos do espectador. Muito também se deve à iluminação natural que foi utilizada no filme. Forman evitou o uso das luzes de set e preferiu o tom soturno que os candelabros imprimem no ambiente. Assim, o realismo das cenas e o impacto visual são sempre muito maiores. Coisa de diretor experiente e de talento, eu diria.
Aliás, não preciso gastar muitas linhas para explicar que, não fosse por Milos Forman, "Amadeus" seria um filme tão medíocre quanto qualquer obra que Mozart coloca à prova em contraposição às suas. É graças ao diretor, que ganhou aqui seu segundo Oscar, que o longa possua, no mínimo, meia dúzia de sequências geniais. Em algumas ocasiões, fica difícil não se surpreender com a qualidade generalizada do todo.
A montagem de "Amadeus" também merece um destaque à parte. É impressionante como Forman consegue provar a genialidade de Mozart em uma das últimas cenas do filme, enquanto partes da música acompanham os gestos e falas do compositor. É como se a edição do filme mostrasse o raciocínio de Mozart e falasse por ele, tamanha é a qualidade com a qual o pensamento ágil do compositor é inserido dentro da cena.
Mas não estranhe se eu ainda nem se quer mencionei o nome de F. Murray Abraham. Deixei o melhor para o final. Pelo papel de Antonio Salieri, o ganancioso e invejoso compositor da corte, Abraham levou o Oscar de Melhor Ator para casa, o qual ele disputou com Tom Hulce, que interpreta Mozart. Murray conseguiu o incrível feito de transformar seu personagem em alguém passível de raiva e pena, em momentos adversos. A sua atuação em "Amadeus", que passa por tons de cinismo, incredulidade, descrença, desprezo e fascínio, é uma das mais impressionantes que o cinema já viu. E o próprio Tom Hulce, que compôs Mozart com uma certa dose extra de esquizofrenia, merece tanto destaque quanto.
Assim como todo o restante do elenco, Amadeus é uma obra que merece ter o seu devido reconhecimento. É claro que 8 Oscars é pouco para uma obra tão alucinante e maravilhosa como esta, mas é certo dizer que o longa já tem seu lugar reservado na história. Trata-se de um filme épico, grandioso e inesquecível, orquestrado pela melhor música de todos os tempos. Mas é bom que se diga: não fosse por "Um Estranho no Ninho", a obra-prima máxima de Milos Forman, "Amadeus" seria ainda melhor visto.
"Medíocres do mundo, eu os absolvo"
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