Sophie Barthes inspira-se nos devaneios de Charlie Kaufman para criar uma obra original, mordaz e conturbada.
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças é um daqueles filmes que a pessoa assiste, pensa, digere e fica com aquele gostinho amargo no final. Charlie Kaufman é mestre em colocar no papel as loucuras boladas em sua própria cabeça. Seja um homem que deseja apagar um antigo amor de sua mente apelando para procedimentos médicos ou um roteirista sem inspiração que acaba por transformar a impossibilidade de se adaptar uma obra para o cinema em filme, Kaufman consegue sempre aquilo que deseja nos seus projetos. A genialidade com a qual ele trabalha em seus roteiros garante a cada filme aquele gostinho agridoce no final, onde nada parece estar resolvido mas tudo faz um absoluto e absurdo sentido. Se "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" é considerada sua maior obra-prima, as loucuras de Quero Ser John Malkovich e Adaptação merecem destaque por fazer parte do processo de formação de Kaufman como um dos maiores roteiristas dos tempos atuais.
Ele, sem sombra de dúvidas, é um indivíduo único no cinema. Certamente não existe um único profissional da área capaz de contar histórias tão absurdas e fazer todas parecerem verossímeis e até mesmo prováveis de acontecer na realidade. Charlie Kaufman é, portanto, o homem a ser batido. Como ninguém jamais foi capaz de pensar em uma narrativa que garantisse o mesmo nível de qualidade que as escritas por Kaufman, é evidente que o único meio de se criar um filme no mínimo parecido com os do gênero marcante dele é inspirando-se no método do roteirista de escrever um script. Acontece que não é uma tarefa fácil criar uma história improvável e desenvolvê-la de tal modo que esta pareça fazer sentido. Sophie Barthes estava ciente disso e conseguiu elaborar uma narrativa completamente maluca, a qual o espectador, ao final do filme, consegue assimilar os fatos e se convencer de que tudo aquilo é interessantíssimo e perfeitamente possível de acontecer, mesmo sabendo que não é.
Mas Almas à Venda comprova a tese de que Charlie Kaufman é único, e que tentar fazer algo parecido com o estilo dele sem imprimir uma característica própria é praticamente suicídio. Barthes possui pelo menos um aspecto que salva "Cold Souls" do fracasso total. Ela escreve e dirige uma história a qual o espectador relaciona diretamente à "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", mas cujo diferencial reside na sensibilidade trabalhada no desenvolvimento do protagonista. Ainda que todo o argumento seja original, tal como o fato de um indivíduo ser capaz de extrair sua alma para descarregar o estresse do corpo, o modo como a narrativa é desenrolada se dá de forma muito parecida com a de "Brilho Eterno". O protagonista apela para um procedimento médico para fazer algo que jamais pensara ser possível. Em "Brilho Eterno", Joel Barish deseja apagar definitivamente Clementine Kruczynski de sua mente, mas o modo com o qual este "procedimento cirúrgico" é explicado ao espectador é tão minucioso que a pessoa logo é capaz de acreditar que tudo aquilo que ela está vendo poderia ser verdade. Com "Almas à Venda" acontece algo parecido.
No filme, Paul Giamatti interpreta ele mesmo. Sim, o protagonista do filme é o próprio ator Paul Giamatti que vive a aflição de não conseguir interpretar o papel de tio Vanya, descrito por Anton Tchékhov na peça de mesmo nome. Paul não consegue encontrar o equilíbrio essencial entre ele e a interpretação perfeita para o personagem, e vê na extração da alma (um procedimento que ele conhece folheando uma revista) o melhor jeito para conseguir trabalhar no papel. Ele dirige-se, então, até o consultório do Dr.Flintstein para sondar o que seria exatamente essa história de "tirar a alma do corpo da pessoa". O doutor explica à Paul que trata-se de um método especial, no qual o paciente é submetido a uma maquina onde ocorre a extração da alma. Segundo Flintstein, a alma de um indivíduo possui uma aparência, um formato, o qual pode ser visto a olho nu. O doutor ainda explica que existe todo um negócio por trás da extração e do congelamento de almas, um método que aparentemente já havia sido requisitado por várias celebridades e que exige diversas burocracias. Paul, apesar de achar tudo aquilo uma loucura sem precedentes, decide arriscar.
O roteiro de Barthes ganha maior dimensão quando os acontecimentos decorrentes da decisão de Paul começam a surgir na tela. O espectador toma ciência de toda a trama que existe neste procedimento, que vai desde o tráfico de almas até transplantes e doações. São detalhes que favorecem a construção da narrativa, e que são ainda mais bem analisados quando percebemos que a diretora optou pelo método mais convencional de se contar uma história absurda. Por este termo eu me refiro ao tom amargo empregado nos diálogos e nas situações descritas pelo roteiro, uma vez que Barthes parece ter perfeito domínio sobre a linguagem cinematográfica de Charlie Kaufman, que mostra-se presente durante todo o filme. Ela faz uso de insinuações satíricas e pungentes à respeito da alma, como a de Paul Giamatti, que tem o formato de um grão-de-bico. A alma do ator cai no chão, corre o risco de ser pisoteada, viaja até a Rússia, faz-se passar pela alma de Al Pacino e chega até a ter o aspecto de um amendoim. Sophie Barthes trabalha com os princípios do cinema de Kaufman, sempre fazendo uso de um humor mordaz e extremamente eficiente.
Sobra pouco para se falar à respeito do restante de "Cold Souls". Paul Giamatti, desta vez me referindo ao ator que não precisou extrair a sua alma, comprova o talento que tem e sua atuação aqui é mais uma para entrar na lista de papeis marcantes e diferentes que ele já coleciona como intérprete. Neste filme, ele nunca esteve tão próximo do espectador. Aquele que o assiste toma suas dores, sente suas aflições e se diverte com os maneirismos e peculiaridades do ator angustiado do longa.
Almas à Venda é o máximo que um cineasta já conseguiu chegar perto do cinema de Charlie Kaufman. Sophie Barthes não se inspira somente nele, mas seu primeiro trabalho no cinema também apresenta ecos da obra inacabada Almas Mortas, de Nikolai Gogol. Barthes mostra ter grande aptidão para contar histórias e, mesmo que este não seja um trabalho totalmente original, uma vez que somente o argumento singular traz algo de novo ao gênero da ficção, a diretora e também roteirista parece estar pronta para projetos cada vez melhores e mais ambiciosos. Não é nem de longe tão inesquecível quanto "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", mas eu lhe garanto uma coisa: você nunca mais enxergará um grão-de-bico da mesma maneira.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário