Instrumentos Mortais: Cidade dos Ossos (2013) - Review
Instrumento Mortal de Hollywood
"Ele está vivo!" grita o dr. Frankenstein ao notar os primeiros movimentos da criatura montada a partir de diversos pedaços de corpos. Nesse momento, o leitor mais afoito deve estar se perguntando o que leva este texto a citar uma das cenas mais famosas de toda a Sétima Arte, pertencente ao clássico do horror que conquistou público e crítica em 1931. É simples, caro leitor: "Instrumentos Mortais: Cidade dos Ossos" (The Mortal Instruments: City of Bones) é um verdadeiro Frankenstein cinematográfico, grande e desengonçado, que esquarteja obras clássicas e blockbusters contemporâneos sem distinção, em busca de todos os fragmentos possíveis para estruturar seu corpo disforme.
O pastiche tem início na protagonista Clary (Lily Collins), um simulacro da Bella Swan de "Crepúsculo" - ou seria do Harry Potter? Seja qual for o caso, Clary é uma adolescente que mora com sua mãe solteira Jocelyn (Lena Headey) e tem como melhor amigo o nerd Simon (Robert Sheehan), que por sua vez é claramente apaixonado pela garota. Ela leva uma vida normal até começar a alucinar com um símbolo misterioso, aparentemente sem motivo. Suas alucinações atingem o ápice quando Clary testemunha um homem de aspecto sinistro ser morto em uma boate. Somente ela pôde ver o crime, e isto a coloca no caminho de Jace (Jamie Campbell Bower), figura misteriosa que revela ser um Caçador das Sombras, metade anjo e metade humano. Jace então explica que o homem morto era um demônio, e a jovem pôde ver tudo pois também é ela uma caçadora de entidades malignas, tendo herdado este dom de sua mãe. Mas não há tempo para se adaptar aos novos poderes: Jocelyn foi sequestrada e o Cálice Mortal, poderoso artefato mágico que pode garantir a linhagem dos Shadow Hunters, foi roubado.
Parece muita informação para apenas um filme, e é. Há muito mais a ser desenvolvido pelo roteiro da estreante Jessica Postigo, mas isto não é indicativo de uma narrativa esbanjando criatividade. Ao contrário, é o principal sintoma de que "Instrumentos Mortais" se limita a beber de diversas fontes pré-existentes, refletindo as mazelas do livro homônimo escrito por Cassandra Clare. Uma pesquisa rápida na internet revela o principal mérito de Clare (pseudônimo de Judith Rumelt) como escritora, antes de ter sua própria série de livros direcionada à meninas pré-adolescentes: idealizar o conto incestuoso entre os irmãos Rony e Gina Weasley, de "Harry Potter". Mas a série de J.K. Rowling parece não ser a única da qual Clare tira suas idéias, já que flutuam na rede dezenas de acusações de plágio, com uma abrangência impressionante que vai de "Crepúsculo" à "Star Wars".
Por este panorama já dá pra ter uma idéia do longa dirigido por Harald Zwart, mas mesmo o espectador mais pessimista não pode prever exatamente o que vem depois do primeiro ato da fita. Antes de engrenar a quinta marcha da ação, o diretor investe meia hora em cenas expositórias convencionais na tentativa de situar o público na mitologia da série, mas há tanto a ser abordado que Zwart não se prende a nenhum conceito. Ainda assim fica a esperança de que tais argumentos sejam desenvolvidos quando o ritmo começa a acelerar, mas então o cineasta esquece das explicações e pisa no freio bruscamente para focar - é claro - no artifício narrativo onipresente em longas deste tipo: a relação amorosa entre Clary e Jace. Para quem estava tão preocupada com o sequestro de sua mãe pela manhã, à noite a nossa heroína parece mais interessada no físico do loiro em roupas de couro do que em qualquer outra coisa. E não se trata de ironia deste que vos escreve, pois em meio ao caos e choque do contato com um mundo mágico totalmente diferente, a garota ocupa seus pensamentos com um desenho de Jace sem camisa.
Fora a inverossimilhança da situação, alguns problemas complicam este relacionamento. Primeiro que Lily Collins e Jamie Campbell não possuem qualquer tipo de química entre si, por mais que o filme insista e tente nos convencer do contrário. Segundo que, teoricamente, este deveria ser um triângulo amoroso envolvendo o amigo da jovem, Simon. Mas o personagem de Robert Sheehan não recebe qualquer destaque fora algumas poucas cenas no início, e portanto não constrói com a protagonista um laço sentimental palpável. O "mundano" (o equivalente de Cassandra Clare para "trouxa") apenas acompanha o grupo para todos os lados sem participar ativamente de qualquer acontecimento importante. É até surpreendente que Jace, com a experiência de vida adquirida em um milênio, sinta-se ameaçado por Simon na disputa pela garota. Para agravar ainda mais a situação, o diretor comete alguns equívocos que esvaziam completamente a profundidade dos momentos mais intensos, à exemplo da cena em que Clary finalmente beija um de seus pretendentes, que deveria ser determinante mas cai no ridículo ao ser banhada por regadores em uma estufa apenas para evocar o romantismo de um "beijo na chuva".
Como resultado, simplesmente não nos importamos com os pretendentes de Clary ou com a própria, bem como as consequências de seus atos ou a importância de seus objetivos. Quanto aos demais coadjuvantes, não há muito a ser notado fora a presença de Lena Headey (a rainha Cersei de "Game of Thrones") para nos lembrar que o ruim não é ter trabalho, mas sim ter que trabalhar. A atriz não é exigida no papel de Jocelyn, e jamais justifica sua presença. Seria melhor que a verba de seu cachê fosse investida em um personagem muito mais importante para a trama, como o sábio Hodge (Jared Harris), que deveria ser uma figura imponente e poderosa inspirada em Dumbledore, mas que se revela um homem fraco que provoca risadas até mesmo nos Caçadores das Sombras sob seu comando. Completando a cota de atores conhecidos está Jonathan Rhys Meyers como Valentine, tão pouco utilizado que não tem tempo sequer para se consolidar no posto de vilão. Meyers possui um semblante ameaçador e intensidade suficientes para o papel, mas passa incólume pela narrativa e acaba participando de apenas uma cena importante quando já é tarde demais.
Este é apenas mais um exemplo da incapacidade do diretor Harald Zwart em perceber os pontos fortes de sua própria obra, assim como o conceito das runas mágicas, que poderia resultar em algo interessante caso bem desenvolvido. Há também indícios de um triângulo amoroso gay envolvendo Clary e um Shadow Hunter aparentemente apaixonado por Jace, uma dinâmica curiosa que é abandonada sem motivos. O diretor ignora o potencial destes argumentos pois parece entretido demais ao adaptar todos os elementos presentes no material-fonte. É verdade que o livro não prima exatamente pela originalidade, mas Zwart poderia ao menos ter buscado uma identidade visual própria para seu filme, e não é o que acontece. Por isso lobisomens e vampiros se enfrentam em cenários que lembram Hogwarts povoados por personagens saídos de Resident Evil, que por sua vez já havia se inspirado em Mad Max, tudo culminando em uma cena copiada vergonhosamente de "Star Wars - O Império Contra-Ataca" (The Empire Strikes Back, 1980). Todas estas referências são ruminadas freneticamente pelo diretor, vagando em círculos por um deserto criativo que não leva a lugar algum senão o caos cinematográfico.
Nem mesmo o compositor erudito Sebastian Bach escapa do pastiche, pois na mitologia que o longa tenta emplacar Bach seria também um matador de demônios, e por isso somos submetidos a suas melodias para piano espremidas entre Demi Lovato e Jessie J. Somente mais uma das afrontas do filme à tudo que é clássico, e por isso o leitor mais crítico me perdoará por ter comparado o "Frankenstein" de 1931 com "Instrumentos Mortais" de 2013. Ainda que faça sentido objetivamente, subjetivamente não há como equiparar uma criatura dotada de uma alma sensível à um longa artificial e sintomático da ganância brutal hollywoodiana. Quando este teste de resistência esgota seus 130 minutos, fica a pergunta: é moralmente certo produzir algo baseado no plágio à idéias de outrem? Considerando o rombo que o longa está criando nos cofres do estúdio, é possível chegarmos à conclusão otimista de que o público condena cada vez mais a anemia moral dos executivos hollywoodianos, instrumento mortal de tudo que há de positivo na Sétima Arte.
Acho que se montarmos uma lista das piores adaptações teen (que veio da onda Crepusculo), esse estaria brigando forte pelo primeiro lugar.
Impressionante como nada nesse filme funciona: romance, ação, roteiro, direção, efeitos especiais, atuações, casal, etc.