A Espuma dos Dias (2013) - Review
A beleza do surrealismo acessível
O surrealismo é, essencialmente, uma forma de libertar o subconsciente do realismo por meio da associação livre de idéias. O acesso a áreas primitivas da mente, que precedem o surgimento da razão na linha evolutiva do ser humano, defronta o indivíduo com sua própria imaginação primitiva e evoca figuras simbólicas que derrubam as paredes artificiais da realidade. A subjetividade de tais símbolos transparece naturalmente nas artes, e no labirinto sensorial de uma obra surrealista escondem-se inúmeros tesouros, que saltam aos olhos inesperadamente e enriquecem a experiência do indivíduo de acordo com sua interpretação. É exatamente esse o efeito de "A Espuma dos Dias" (L’écume des jours, 2013), gracioso filme do diretor Michel Gondry que dá asas à criatividade para desbravar o território do inesperado, pintando um quadro inusitado porém jamais confuso ou pedante.
Curiosamente, a história banhada pelo surrealismo de Gondry se revela bastante convencional. Colin (Romain Duris) é um jovem boêmio com uma vasta fortuna em seu cofre. Ele vive na Paris do pós-guerra, cercado pelos seus amigos Nicolas (Omar Sy), cozinheiro multi-uso, e Chick (Gad Elmaleh), um viciado na obra do filósofo Jean-Sol Partre (em referência jocosa ao Jean Paul Sartre da vida real). Salvo da necessidade de trabalhar para viver, Colin passa a maior parte do tempo ouvindo jazz, inventando máquinas inusitadas como o "pianocktail" e atendendo à festas que celebram seu estilo de vida. Em uma dessas festas ele conhece Chloé (Audrey Tautou), que traz consigo o significado de amor à primeira vista. Ambos se casam e levam uma vida cheia de felicidade, até que Chloé é atacada por uma estranha doença - uma flor crescendo em seu pulmão. Colin terá que trabalhar para pagar o tratamento de sua esposa, e a vida do casal gradualmente se deteriora afetando o ambiente ao seu redor.
O encontro da cinematografia inventiva de Michel Gondry com o livro homônimo de Boris Vian resulta em um filme que reúne as melhores características de ambos os artistas franceses. Escrito em 1947, o texto de Vian é um daqueles livros inspiradores porém de difícil tradução para o Cinema por conta de sua estruturação em metáforas visuais, consideradas abstratas demais para o grande público moderno. Apenas dois cineastas haviam desafiado a dificuldade para adaptar este cult literário, sendo o último deles o japonês Go Riju, cujo esforço resultou no obscuro filme "Kuroe" (2001). Mas faltava ainda um diretor capaz de equilibrar uma narrativa simples e o surrealismo visual, sem tornar o filme inacessível para platéias de todos os tipos.
Até Gondry se alistar para a missão, levando consigo o roteirista Luc Bossi. Por uma coincidência do destino, a obra de Boris Vian traz em seu dna diversas idéias recorrentes na filmografia do cineasta francês, que despontam sobretudo nos seus melhores momentos. Um exemplo da sintonia entre Gondry e Vian é a excentricidade artística do diretor, materializada em "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) e intensificada em "A Espuma dos Dias", que arrebata o público logo de cara com sua linguagem visual abstrata. Toda a estranheza do primeiro contato com um mundo onde objetos inanimados correm pela casa e chefs de cozinha habitam geladeiras, logo se dilui em humor e curiosidade. Este cenário surreal é encarado com tanta naturalidade pelos personagens que a verossimilhança interna surge sem dificuldade, deixando o espectador confortável e ávido pelas novidades de uma direção de arte transbordando criatividade.
Responsável por vários sucessos de bilheteria que lhe renderam credibilidade na indústria, Michel Gondry recebe carta branca para dar fim à um orçamento de 19 milhões de euros (alto para os padrões do cinema francês) e não desperdiça a oportunidade. O diretor liberta sua imaginação para compôr um longa tão rico visualmente que é impossível notar todos os seus detalhes em apenas uma sessão. Chama a atenção o esmero na composição dos efeitos visuais, uma mistura heterogênea de diversas técnicas de animação, como stop motion e desenhos manuais. Em tempos de filmes construídos inteiramente em CGI, é saudável uma película que recorre à técnicas antigas para soprar vida ao mundo que recria, o que lhe dá um ar retrô e ao mesmo tempo inovador. Um paradoxo positivo que só podia ter brotado da mente inquieta de Gondry.
Muito embora o filme seja construído em imagens surreais, o cineasta põe a linguagem visual à serviço da linguagem textual, e portanto sua obra não é daquelas que se escondem atrás de uma cortina de fumaça de efeitos especiais de modo a enganar o espectador. Por trás do surrealismo há uma narrativa simples, que mantém o público ancorado em um pedaço de sua realidade cotidiana e impede que o filme fique à deriva em um mar de simbolismos complexos. A história de amor e perda é interpretada com delicadeza por um elenco premiado, à começar pelo casal principal composto por Romain Duris e Audrey Tautou, conhecida mundialmente por protagonizar "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, 2001). A presença do simpático Omar Sy, famoso no Brasil por seu papel em "Intocáveis" (Intouchables, 2011), também contribui muito para manter o tom alegre do longa, e a dinâmica afinada entre todos os atores valoriza a amizade de seus personagens, que permanece indestrutível mesmo com a miséria batendo em suas portas.
Portanto quando o riso rareia e a abundância dá lugar à necessidade, o tom se torna grave e a fita começa a perder suas cores de comédia romântica para assumir o cinza do drama, literalmente. Na medida em que a doença de Chloé drena a vida de tudo e todos à seu redor, os ambientes se cobrem de teias de aranha e diminuem cada vez mais, sufocando os personagens com a urgência da situação. É quando o boêmio Colin se vê obrigado a encarar as mazelas do mundo longe de sua bolha de riqueza minguante, e percebe que a realidade passa longe de suas festas regadas à jazz e dança. Gondry então sugere que esta Paris do pós-guerra é o cenário de uma distopia bélica, onde fuzis crescem como plantas alimentadas por calor humano e a opressão onipresente abafa as manifestações sociais, uma leve crítica "orwelliana" à situação econômica européia atual. Porém mesmo com a faca do desespero em seus pescoços, os personagens sempre podem buscar refúgio nas memórias do passado, poderosa morfina que atenua suas dores do presente.
É desta forma que o cineasta valoriza a memória, tema central de "Rebobine Por Favor" (Be Kind, Rewind, 2008) e o já citado "Brilho Eterno...", dois expoentes de sua filmografia. Outro indício de que em muitos sentidos "A Espuma dos Dias" é uma sinopse da carreira de Gondry, que neste filme dialoga com a metalinguagem e o surrealismo para dar vida à um livro clássico. Por sua vez, o texto de Boris Vian fornece combustível suficiente para alimentar as características artísticas do próprio diretor, juntando a fome com a vontade de comer. Se o cineasta fosse um pintor, certamente seu trabalho se aproximaria do genial Salvador Dalí, manipulando o abstrato para extrair do subconsciente os sentimentos em sua forma mais pura. Acostumado às grandes platéias de Hollywood, Michel Gondry realiza tudo isso em um filme leve e delicado, iluminado pela criatividade até mesmo em seus trechos mais escuros.
Pouco importaria se o longa fizesse sentido, afinal a poesia é sobre sentir, e não raciocinar. Mas faz. O simbolismo aqui é singelo, e diz respeito apenas à um mundo onde a poesia desafia a física ao transformar os raios de sol em cordas musicais. Preservando a coerência, Gondry demonstra ser possível usar a Arte do Cinema para fazer Arte NO Cinema, valendo-se da simplicidade que acompanha as boas idéias e as grandes obras. Agora, cabe apenas ao tempo confirmar ou não a vocação deste filme para a eternidade.
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