Django Livre (2012) - Review
1858. Dr. King Schultz (Christoph Waltz), caçador de recompensas alemão, compra um escravo chamado Django (Jamie Foxx) para que este o ajude a encontrar 3 fugitivos da lei com um preço em suas cabeças. Ao descobrir que Django tem uma habilidade nata com armas e que pretende encontrar sua esposa, também escrava e vendida separadamente após uma tentativa de fuga mal-sucedida, Schultz propõe uma parceria que os levará das montanhas nevadas ao Mississippi para resgatar Broomhilda (Kerry Washington), esposa de Django. O problema é que Broomhilda pertence à Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), fazendeiro inescrupuloso que não irá se interessar em vender uma simples escrava à preço barato. Django e King precisam então de um plano para salvar Hilda, e finalmente reunir o casal em sua liberdade.
Com essa premissa simples surge "Django Livre", filho mais novo de Quentin Tarantino e muito aguardado após o sucesso de "Bastardos Inglórios".
Pela temática e contexto histórico do filme, ambientado num cenário no qual um indivíduo oprimido se levanta contra a classe dominante e moralmente corrompida, é nítido que Tarantino volta ao tema de vingança abordado anteriormente em "Bastardos". No entanto, as semelhanças param por aí. "Django" é um filme mais refinado em muitos sentidos, mostrando uma clara evolução na habilidade de Tarantino como diretor e roteirista, sem abandonar a irreverência característica que o acompanha desde o início de sua carreira.
A primeira coisa que salta aos olhos é a plástica do filme. Desde o logotipo antigo da Columbia Pictures que surge logo nos primeiros segundos de projeção fica claro que este será um filme fiel às suas raízes de spaghetti western, gênero antigo de faroestes com produção italiana e dirigidos por cineastas como Sergio Leone, hoje consagrados no rol de lendas da sétima arte. As diversas referências à antigos filmes famosos do gênero denunciam a condição de cinéfilo de Tarantino, conhecido no meio cinematográfico por ter assistido à muitas centenas de filmes e ser um fã da própria arte. O próprio nome do longa é uma homenagem ao faroeste "Django" de 1966, no qual o personagem homônimo era interpretado por Franco Nero, que também faz uma pequena participação aqui numa breve porém interessante cena com Jamie Foxx. Até mesmo a trilha sonora mescla músicas exclusivas com temas de faroestes clássicos, compondo uma trilha incrível que poderia facilmente ser uma coletânea de grandes sucessos antigos e novos.
Porém não é só de referências que vive "Django Livre". O filme é sustentado por um roteiro muito original e extremamente bem-escrito, no qual sobram poucas arestas a serem aparadas. Apesar de ser um filme longo, com quase 3 horas de duração, não há qualquer gordura a ser cortada e o ritmo do filme flui sem enrolação, permitindo que a temática interessante e as situações criadas mantenham presa naturalmente a atenção do espectador, e fazendo com que o tempo passe sem perceber. Por isso é um filme que vale muito a pena ser assistido no cinema, o que explica o grande sucesso de bilheteria mesmo semanas após a estréia.
Só que de nada adiantaria um ótimo roteiro sem atuações convincentes para apoiá-lo, o que certamente não é um problema com o time de atores envolvidos. Comandado por um diretor que domina sua técnica, o elenco dá o melhor de si e certamente acredita no filme. Há total entrega dos atores, simplesmente não há um que destoe negativamente dos demais. Positivamente, no entanto, a história é outra. O trio principal composto por Jamie Foxx, Christoph Waltz e Leonardo DiCaprio possui um entrosamento raro de se ver, com os 3 atores entregando performances memoráveis e dignas de prêmios. DiCaprio, inclusive, talvez seja o que mais chame a atenção em tela, incorporando o sádico Calvin Candie de uma forma impressionante e por vezes assutadora. Chega ao extremo de cortar a mão em cena e continuar atuando como se nada tivesse acontecido, aproveitando para esfregar seu sangue na cara de uma (genuinamente) horrorizada Kerry Washington, no auge do sadismo e loucura de seu personagem.
Mas o filme gira em torno da parceira entre Django e dr. Schultz, e portanto o que brilha mesmo é a dinâmica entre os atores. Nesse ponto, destaca-se novamente o alemão Waltz, no domínio de seu talento para criar um personagem carismático, sábio, e cheio de maneirismos. Certamente é um trabalho digno de Oscar, que ficará marcado na memória dos que assistirem ao filme. A evolução dos personagens em si também é algo que chama a atenção. Ao passo que o dr. King já nos é apresentado como um homem guiado pela razão e não pelos sentimentos, Django é seu extremo oposto. Mas enquanto o escravo aprende com seu mentor a pensar com a cabeça antes de agir, King gradualmente é afetado pela barbárie da sociedade doente em sua volta. No final das contas fica claro que o alemão, vindo de uma sociedade mais desenvolvida, construiu a sua moral e personalidade baseado em elementos exteriores aos acontecimentos do filme, e como tal acaba por ser suscetível às constantes marteladas morais que recebe ao entrar em contato com a exploração de um ser humano pelo outro, algo inerente à escravidão.
Django, por outro lado, carrega consigo as marcas desses abusos, tanto em seu corpo quanto em sua alma. Sua persona é construída e cimentada por tal exploração, e é daí que vem o seu desejo tão grande por liberdade. Moldado por toda a violência sofrida, é menos propenso a se impressionar com os acontecimentos à sua volta, o que permite que entre no jogo escravocrata dos brancos ao seu redor apenas até resgatar Broomhilda, como último e supremo esforço em busca de sua liberdade. Aqui, no entanto, Tarantino faz uma observação de que é preciso tomar cuidado. Stephen, o escravo-secretário de Candie interpretado por Samuel L. Jackson, é o exemplo do que pode acontecer com quem sacrifica sua moral constantemente em troca de vantagens. Chegou à um ponto em que não é possível mais diferenciar-se dos que o escravizaram, tornando-se tão desprezível quanto eles. Ja avisava Nietzche que quando se olha durante muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta para você. Stephen é o exemplo perfeito.
Porém Tarantino está muito longe de ser um moralista, e não é aqui que ele começa a se levar a sério. Aqui ainda há muita violência, comédia, diálogos e situações politicamente incorretas que sempre foram sua assinatura. "Django Livre" é um grande progresso para o diretor, que possui o controle criativo de seus longas e está visivelmente no topo de suas habilidades. Como tal, é um filme melhor que o excelente "Bastardos Inglórios", e certamente um dos melhores da carreira do cineasta. É recheado de referências que irão agradar aqueles apaixonados por cinema, e atuações incríveis por parte de todo o elenco. Costumo dizer que direção e atuação andam juntas. Ponto para Tarantino novamente. Mais um em sua cada vez mais brilhante trajetória.
Porra, muito boa a critica, parabéns.
Muito obrigado Leonardo!