A frase mais popular e citada de «Soylent Green», vulgo "plot twist" da história distópica e social protagonizada por Charlton Heston, só é pronunciada nos momentos finais do filme. É uma das últimas coisas, aliás, que ouvimos da boca do seu personagem, um polícia do sistema político obscuro e complexo da Nova Iorque do ano da graça de 2022, e que nos chega de uma forma assustadora. Um dos mais bem conseguidos êxitos de bilheteira do género sci-fi dos anos 70 (a nível de intemporalidade) continua a criar um impacto desgastante no espectador, e infelizmente, o conteúdo não perdeu a sua atualidade - talvez até que, com o passar dos anos, ele tornou-se cada vez mais preciso e direto para a situação que o nosso planeta e nós, seus habitantes, temos de enfrentar. Se há quarenta anos, o mundo catástrofe, derivado de uma sociedade catastrófica, putrefacta e miserável, que nos é retratado em «Soylent Green» poderia ser considerado demasiado excessivo e fantasioso, é preciso olhar uma outra vez para a fita no nosso tempo, e percebermos que, afinal, a Humanidade nunca esteve tão perto de chegar a este estado como agora. Basta ver com atenção a montagem que abre o filme, com uma série de imagens reais que fazem uma espécie de "escalada" da ruína do ser humano, no meio da poluição, dos conflitos, e da perda injustificada, massiva e patética de vidas inocentes no quotidiano das grandes metrópoles, onde o lixo é rei e a destruição glorifica os grandes chefes. E é de notar que o próprio filme se subjuga a esse objetivo de imperfeição - quase todas as cenas mostram a mui extensa imperfeição deste mundo muito mais imperfeito que aquilo que possamos imaginar à partida.
Tem talvez a interpretação mais invulgar de Charlton Heston. Sim, porque nunca conseguiremos retirar da cabeça a imediata associação que fazemos entre o ator e os grandes épicos bíblicos que protagonizou, como «Ben-Hur» (o mais famoso e espetacular de todos), «Os Dez Mandamentos» e outros que tais, tal como filmes de grandes aventuras históricas. Vê-lo como este polícia que deseja descobrir a verdade e a resposta para os vários mistérios que rondam um bizarro homicídio (cuja vítima é interpretada pelo lendário Joseph Cotten) é revelador de um talento que tinha mais para dizer do que simplesmente aquilo que transmitiu nesses grandes papéis dramáticos e carregados de "respeitinho". «Soylent Green» tem ainda Edward G. Robinson na sua derradeira aparição no grande ecrã, e porventura é o melhor em termos de atuações no filme, ao lado de Heston. Não deixa de ser curioso, e até algo irónico, que a última personagem da sua carreira acabe por gerar um simbolismo humano acrescentado devido aos acontecimentos reais... mas não é essa a mística que interessa em «À Beira do Fim». É um filme corajoso, que se eleva por ter as falhas que muitos filmes igualmente possuem, mas não falha onde muitos outros falharam - isto é, na originalidade, na maneira subversiva e filosófica como se conta uma história fortemente política e historicamente precisa, relato mundano de uma triste realidade que se tornou mais real hoje do que em 1973. Como retrato de um suposto futuro ficcional, os pontos de contacto entre «Soylent Green» e o que verdadeiramente aconteceu ao mundo nas últimas décadas não conseguem deixar de alarmar o espectador: se calhar até precisamos de ter ainda mais cuidado com aquilo que comemos... nunca se sabe!
Mais real ainda é o eterno conflito entre classes, aumentado pela podridão desta distopia e pela miséria social dominada pelo poder do Soylent Green, e seus quejandos, na vida da população submissa. O dinheiro nunca deixa de ser aquilo que regula e condiciona as relações humanas... mas para percebermos isso não precisamos de uma história futurista, tal como o poder das influências e dos grandes grupos económicos e políticos, que sabem sempre manipular bem todas as peças do jogo a seu favor. Com ideias que ficaram para a História da cultura pop e para muitas imitações posteriores (que nunca ultrapassaram o poder do original, felizmente), há aqui toda uma fortíssima mensagem social e política que nos perturba e emociona, em doses iguais. E acaba da forma mais aberta, atenta, e paranóica que se poderia alguma fez imaginar. Mas alerta-nos para a atualidade, para o valor de tudo o que achávamos até então inútil no funcionamento do sistema social, e que regula as nossas vidas tão pacatas. «Soylent Green» tem cenas de inegável genialidade e intemporalidade, que se sobressaem apesar do lado aparentemente datado e "seventies" que Richard Fleischer (realizador clássico de filmes mais soft e de grandes aventuras como o notável, e algo esquecido, «20 000 Léguas Submarinas») impôs na sua realização. Talvez fosse propositado: serviria para alertar o espectador que o ano 2022 não seria mais do que uma metáfora para aqueles tempos...
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário