Toda a estilização que o cinema de Tarantino possui acaba por soterrar ou pelo menos embaçar um pouco os temas que ele lança nas entrelinhas de suas historias bem boladas. O maior exemplo disto é facilmente Pul Fiction, por baixo de toda a enxurrada de referências culturais, inovações técnicas e a moldura de um estilo único, há um sarcástico, bem humorado e avesso estudo sobre a redenção. Avesso, pois é incomum. Nenhum dos personagens que a alcançaram a buscavam quando o filme começou. Tudo parte de um código entre homens do crime, que esteve presente também em Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992). Avesso também por que o filme é assumidamente sujo e retrata um universo – deixando claro sua surrealidade – mais sujo ainda. Os personagens não buscam se redimir de seus males, mas como meio alternativo de fuga das consequências deles.
Os personagens passam por um processo de aprendizado violento sobre a própria existência. Mas Pulp Fiction não é uma obra de cunho existencial, como já disse, nenhum deles busca algo de muito concreto, apenas vivem marginalizados e sob a entranhas da sociedade que já está moldada e pouco a pouco vão passado por situações que leva uns a reconhecer e analisar sua situação no mundo e outros a apenas mudar sua situação, sem reconhecer os fatos incomuns que lhe renderam esta mudança. Pulp Fiction fala da libertação das amarras, o que lhe torna ainda mais genial, visto que o próprio cinema de Tarantino foge das convencionalidades e àquela altura mudaria e influenciaria muita coisa no mundo do cinema.
No começo somos apresentados a homens brutais e sem piedade, que vivem sob códigos morais que vigoram apenas entre si, todos os personagens, sem exceção, flutuam na atmosfera daquele que é considerado o mais poderoso, Marcellus Wallace. Os assassinos profissionais Jules e Vincent seriam os próximos da hierarquia social e Butch, o pugilista, logo abaixo deles, mas entre eles e o poder maior há Mia Wallace. Mas o que lhes diferem, fazendo com que ocupem camadas distintas? No mundo de Pulp Fiction, o ato de matar corresponde simbolicamente ao poder possuído por cada um. Marcellus manda em todos, seu misticismo é exercido desde o primeiro momento que surge em tela, sua face permanece pelas primeiras aparições em segredo. Mia igualmente surge sorrateiramente, primeiro a voz, os lábios em seguida, para só então entrar de vez em tela. Vincent e Jules por conveniência obedecem a ordens, e matam. Matam por oficio. O fazem com consciência e tem noção de como fazê-lo, o que quer dizer que possuem certo poder dentro daquela sociedade. Butch Coolidge entra na historia como a personificação máxima da marionete, mas aos poucos sua ousadia vai sendo apresentada, ao passar a perna em Marcellus, ele desafia o gigante, mas ainda está no limbo daquele universo, sua relevância é de fato denotada, quando o mesmo fica sabendo que matou um adversário no ringue, reage sem muita preocupação, mas diferente dos assassinos, não fez com total intenção, simplesmente aconteceu, o que ainda lhe deixa abaixo do poder deles, mas numa posição de contrariador, puxando o carro para a busca inconsciente da redenção.
Por toda a obra há o forte traço do diretor, de lançar diálogos aparentemente fortuitos e inconseqüentes, do cotidiano. Mas a cada frase dita, por traz das risadas que proporciona há um olhar sarcástico a respeito da sociedade guiada por inutilidades. O primeiro dialogo entre Jules e Vincent no carro deixa claro que em suas vidas dão valor a coisas que não lhe proporcionam muito, é o apego a futilidades, e a intenção é que nos identifiquemos com os assuntos aleatórios saídos dos diálogos verborrágicos dos personagens, e isso tem grandes chances de ocorrer. E quando Jules declama Ezequiel 25:17, pensamos que é um personagens com fundamentos filosóficos, ao fim descobrimos que era algo despretensioso dito ao vento, mas que com o tempo vai fazendo o próprio questionar sua vida no contexto da citação ou vice-versa. Mas isso, após apenas quando ele e seu parceiro são alvo de uma chuva de balas e saem sem apenas uma lhe terem acertado, ele julga algo como milagre divino e passa a questionar sua situação, seus atos e sua vida, chegando ao fim numa auto-redenção, quando desiste de matar um bandido, dando-lhe dinheiro para não ser obrigado a fazê-lo.
A mudança para Butch vem na passagem mais obscura do filme. Fugindo de Marcellus ele acaba o encontrando acidentalmente - quando tenta recuperar um relógio herdado de família, que seu pai manteve seguro na guerra, para lhe dar, o escondendo no ânus, depois dando a um amigo que o escondeu no mesmo lugar, para só então chegar as suas mãos deixando claro o apego a porcarias, para não usar outro termo - e após alguns eventos acabam presos por dois lunáticos psicopatas sexuais. Enquanto abusam do mais poderoso do circulo inicial, Butch foge, mas retorna com um símbolo do desapego daquela sociedade americana, a espada, marca da cultura oriental baseada em moldes de honra rígidos, é curioso ver que antes de se armar de uma espada, ele passa, por exemplo, por um taco de baseball, símbolo americano e o deixa para trás, para num ato de honra retornar e resgatar seu perseguidor, mesmo que para salvar a própria pele. Sendo assim, Butch, o primeiro a alcançar a libertação daquele mundo, retornando inclusive a sua cidade natal com sua namorada.
Vincent, o único dos três personagens centrais a não reconhecer sua situação tem um fim trágico e morre pelas mãos de Bucth, ele morre fazendo um serviço para Marcellus, mostrando sua dependência. E na última cena, no assalto no restaurante, testemunhando os julgamentos de Jules, seu parceiro, a respeito do futuro e de uma mudança como projeto de vida a ser seguido, ele reage e não concorda, mas na verdade não dá muita importância. O grande momento de Vincent é a dança com Mia, numa alusão brilhante ao sucesso Os Embalos de Sábado a Noite (Saturday Night Fever, 1977) estrelado por Travolta, que praticamente revive seu Tony Manero, unido a referências diretas a Godard. Numa cena em um restaurante onde os garçons estão caracterizados como famosos, mostrando exatamente o apego das pessoas pelas personalidades publicas.
Por que falar do mundo de referencias e homenagens de Pulp Fiction é repetir o que todos vêm dizendo desde Cannes, 1994.
vlw aí Ted
escreve teu texto ai também haha
O que mais impressiona na maneira com que Tarantino trata seus filmes e, consequentemente - talvez principalmente - seus personagens, seja a \"crueza\". Ele não os banaliza, não os superestima, muito menos tem pena deles. Ele os faz passar o que eles têm de passar. O resultado é consequencia.
Meus parabéns pelo texto.
Obrigado Cristian!