Pegamos carona em um trêm em velocidade quando surge uma silhueta dançando ao som de Linkin Park. Os filmes de Michael Mann são cinema em movimento. O ponto de partida já se constitui na ação, e aqui essa tendência é levada a sério com extremidade. Assim como toda a paleta estilística do diretor é abusada ao longo de duas horas do mais refinado exibicionismo estilístico, que encontra seu ponto de chegada definitivo. A acusação de falta de substância seria compreensível se a jornada não fosse tão primorosa. Esta palavra deve ser levada a sério, Miami Vice é belíssimo, poético.
O ponta pé do enredo pretexto concentra-se numa investigação que deu errado, forçando os detetives Sonny e Rico a abandonarem seu caso e partirem numa missão de disfarce e insinuação para sanarem os problemas derivados das ações da equipe anterior. Os primeiros momentos de Miami Vice são criticados por sua edição, acusada de apressada e sem critério, de fato, é rápida, mas isso em função da atmosfera proposta, todo o filme é situacional, Mann determina o período da vida de seus personagens que deseja examinar e filmar os acontecimentos. O fato de possuir áurea episódica não interfere negativamente.
Se os personagens não possuem claramente um passado ou uma identidade complexa, explica-se devido às intenções narrativas, a busca pelo momento, resultado disto é cada única cena e imagem arquitetada – por que aqui tratamos de um autêntico esteta - alcançar a extrema intensidade, seja ela um casal fazendo sexo ou um assassinato a sangue frio. É com isso em mente que testemunhamos dois homens entre o amor e a violência, precisando chegar ao fim vivos de qualquer maneira, cumprindo seu dever.
Lançados em campo de guerra ambos os personagens centrais, em dada altura, passam a serem motivados por seus interesses amorosos, e a forma que reagem a isso são opostas, o que possibilita uma análise de personalidades em meio ao emaranhada que se desenrola. A busca de Miami Vice é muito mais que a um chefe do crime organizados, é a um estado de plenitude diante dos dilemas mais inerentes ao humano, o amor, as responsabilidades profissionais.
Sonny reage institivamente, sempre buscando o que deseja, no momento em que quer, dessa maneira faz a primeira abordagem à personagem de Li Gong e também por isso não aceita o quão inviável e de fato, perigoso, é seu relacionamento, e mesmo tendo consciência de sua realidade, no fundo existe uma crença de que há uma chance. Em paralelo ao drama do casal, a personagem feminina em questão sustenta outro pilar da obra, quando é estabelecido em seu entorno um jogo territorial, que acaba por catalisar ações no filme, além de Sonny, o chefe do crime e um intermediário também permanecem num embate de poderes se movimentando ao redor dela, revelando uma complexa função dramática da personagem.
Enquanto isso Rico é o homem da casa, sua motivação diária é voltar ao lar no fim do dia de trabalho, voltar a sua esposa, e no momento em que esta é posta em perigo ele não compromete a operação e lidera o resgate de modo centrado e até frio. Personalidade que contrapõe-se ao seu parceiro, e neste cenário Mann facilita o próprio trabalho de expor personagens em situações limítrofes sem recorrer à verbalizações desgastantes ou fugir de seu foco, que é a situação.
O arco se completa em um intercalar de cenas que alcançam um dos êxtases máximos de todo o cinema do diretor, a dilacerante passagem de despedida entre Sonny e sua namorada, onde ele aceita que a tranquilidade só será alcançada – para ambos – se negarem o amor ali vibrante. E o que resta daquela relação é a imagem, importante ressaltar, a imagem de ambos se afastando em horizontes opostos, complementando o desfecho de Rico, a beira da cama onde se encontra a esposa entre a vida e a morte, as mãos dadas em uma rima melancólica com o estado de seu parceiro é dilacerante.
Entre os dois casos amorosos existe a exposição da relação de irmandade entre os dois detetives, que é sutilmente abordada entre momentos extremos, um sempre cobrindo o outro. Enquanto Sonny demonstra em atitudes notáveis a grande importância que dá a seu parceiro, Rico verbaliza em um par de cenas apenas sua preocupação pelo outro, no fim Mann faz questão de nos dar como última imagem Sonny retornando ao hospital ao encontro de Rico.
Como já dito, Miami Vice – o seu cinema mais recente principalmente - é experimentalismo artístico e autoral. Todos os seus fetiches aqui encontram o sublime. Os olhares profundos, pegue a cena da rodovia logo no início; o tiroteio realístico numa emboscada, com a câmera capturando corpos baleados por dentro de um carro; a beleza das ruas de concreto bruto em contraste com as luzes da noite de Miami e incursão de personagens ao meio, com um trabalho a cumprir e afogados em dilemas. Puro Michael Mann, o poder da imagem e do cinema.
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