Personagens frustrados não são uma novidade no universo alleniano. A título de exemplos, alguns nomes de uma vasta galeria podem ser citados, como o Isaac Davis (Woody Allen) de Manhattan (idem, 1979) - interessado na amante de um amigo -, a Cecilia (Mia Farrow) de A rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985) - que encobria o sentimento com sucessivas idas ao cinema para ver seu filme predileto -, a Jeffrey (Julia Roberts) de Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996) - tentada a conhecer a vida fora do casamento - e o Gil Pender (Owen Wilson) de Meia-noite em Paris, um saudosista de carteirinha que se considera nascido tarde demais. A protagonista de Roda gigante (Wonder Wheel, 2017) é mais uma integrante desse time: Ginny (Kate Winslet), simpático apelido de Virginia Rannell, uma dona de casa dos anos 50 que está longe de viver a vida de que gostaria. E dessa frustração começa a nascer a ação do 46º filme do realizador, que mantém o fôlego de um longa por ano desde 1982.
Infelizmente, a produção sofreu um certo boicote por causa do ressurgimento (fato que ocorre de tempos em tempos) da acusação de abuso sexual contra Allen, e com isso a merecida indicação ao Oscar, bem como a vitória, para Winslet, simplesmente não aconteceram. E bastam poucos minutos de narrativa para constatar que a atriz está em um de seus cinco melhores desempenhos da carreira. Em olhares, gestos e falas, ela ilustra o psicológico de alguém que espera mais do que recebe, e está ocupando seus dias de maneira inócua. Por sua vez, o cenário em que a história se passa não poderia ser mais contrastante: Coney Island, espécie de balneário que tem como um de seus atrativos a multicolorida roda gigante que forma o título. As cores estouradas e vibrantes capturadas por Vitorio Storaro, em mais uma colaboração com Allen, viram personagem desde o plano de abertura, que traz Mickey (Justin Timberlake), o narrador personagem que prenuncia um pouco da ação sobre a qual vai fazer algumas ponderações. Sem dar certeza de que a história é real ou apenas fruto de sua imaginação de escritor (outra recorrência alleniana), ele se apresenta para o público do alto de sua cadeira de salva-vidas.
Já fazia tempo que Allen e Winslet deveriam se encontrar, sobretudo quando se considera que ela coleciona interpretações marcantes - a Clementine de Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004) é uma delas - e ele tem enorme talento na direção de atrizes, tendo várias delas ganhado o Oscar em filmes seus. E tal encontro não podia ser mais feliz, pois aqui tudo funciona em termos de dramaturgia e desenvolvimento. Winslet se mostra à vontade como uma das figuras femininas fortes escritas pelo cineasta, fugindo de cacoetes visuais que poderiam gerar o rótulo de maluca ou histérica. As neuroses de Ginny são palpáveis e muitas mulheres em sua faixa etária devem se identificar com o sentimento de tempo perdido e de plena incerteza sobre o que ainda é possível alcançar. Dito de forma simples, ela só quer uma vida que valha a pena. Daí o apego quase imediato a Mickey, no qual vê um sopro de frescor e a chance de desenterrar seu talento dramático, no qual deixou de investir desde o casamento com Humpty (James Belushi, em um grande papel depois de séculos), uma relação monocórdia e sem traços de paixão ou romantismo.
Não é somente Winslet, porém, que estreia no cinema alleniano. Os demais integrantes do elenco também selam aqui sua primeira parceria com o novaiorquino, cuja reconhecida habilidade na direção de atores mais uma vez se comprova. Muito se comentou sobre o desempenho de Timberlake ser engessado e destoar do de Winslet, mas não é o que se verifica com os dois em cena. Na verdade, enquanto seu personagem representa a inexperiência e o desejo de desenvolver sua veia artística e ter o seu lugar, a dela traduz a chegada à maturidade - ao menos a cronológica - e alguns tropeços já vividos. Outra que também entrega um bom trabalho é Juno Temple. Na pele da jovem enteada de Ginny, ela completa o triângulo amoroso capaz de gerar desdobramentos que trazem novamente à tona uma questão cara ao cinema do diretor: a moral, bem como a privação dela, ainda que por um breve instante, e a consciência. Diferentes resultados já vieram desses temas, com abordagens cômicas e dramáticas, e em Roda gigante Allen pende para o segundo gênero. Daí vem a acusação já batida de que ele se repete, o que em parte é verdade, mas também não é demérito. Estamos falando de um autor que elegeu sua assinatura, afinal. E não se trata de um caso singular.
A propósito da citada fotografia de Storaro (detalhe técnico que, se comentado, vale a pecha de cinéfilo chato), não é exagero o que se disse sobre ela ser um personagem dentro da narrativa. Houve quem dissesse que o esquema de cores adotado tornou a história teatral demais, o que não parece uma observação acertada. Cinema é basicamente imagem, logo uma iluminação que se incorpore ao enredo de tal forma a se sobressair junto com seus intérpretes e esteja servindo a alguma finalidade pode ser considerada um êxito. E, ainda que fosse verdade, qual o demérito de evocar ao teatro? Uma cena em específico reforça essa tese da luz personagem: é um dos diálogos de Ginny com Humpty, quando os dois estão perto da janela e a Roda da Maravilha (tradução livre do nome da atração do título) é visível ao fundo. À medida que os estados de ânimo dos dois vai se alterando, as cores vão mudando, revelando uma rica paleta carregada de significado. Com isso, Roda gigante também deslumbra as retinas e mantém o cinema alleniano em um patamar elevado, a despeito da corrente contrária de seus detratores.
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