Planos estáticos e atuações propositalmente mecânicas dominam o cenário de La sapienza (idem, 2014), realizado por Eugène Green. Depois de uma abertura deslumbrante visual e auditivamente, somos conduzidos à observação de um casal em franca dessintonia, inclusive nos olhares. Alexandre (Fabrizio Rongioni) e Aliénor (Christelle Prot) são marido e esposa há 19 anos, o que lhes permitiu um acúmulo de muitas histórias, mas todo esse tempo gerou também um desgaste na convivência entre ambos. Em passagem pela Itália, onde ele recebe um prêmio por sua contribuição para a arquitetura e ela simplesmente o acompanha, os dois ajudam a jovem Lavinia (Arianna Nastro), que sofre de um transtorno nervoso e passeava com o irmão Goffredo (Ludovico Succio). Para Alexandre, é somente um entre tantos acasos. Para o rapaz, estão todos dentro do mesmo ambiente arquitetônico, por assim dizer.
Ostentando um perfil arredio, Alexandre evita maiores aproximações com os irmãos, mas Aliénor insiste em convidar Goffredo para jantar e faz algumas visitas a Lavinia para saber de seu estado de saúde, até que convence o arquiteto e levar Goffredo consigo a Turim, para onde vai a trabalho. Uma vez separados, eles ficam na companhia de seus respectivos jovens interlocutores, e são a deixa para que Green levante discussões sobre a condição humana, passando por tópicos como felicidade a dois, o peso do passado, a função da arquitetura em mundo prático e tantos outros, compondo um painel de diálogos em detrimento da ação. O elenco atua segundo um modus operandi kaurismäkiano – referência ao cineasta Aki Kaurismäki, em cujos filmes os atores exibem desempenhos um tanto robóticos -, que chama a atenção logo de saída. Pode-se conjecturar sobre essa opção de Green, mas não é nada que desabone o filme.
A profusão de conversas se alterna entre o francês, que Lavinia aproveita para colocar em prática com Alienor, e o italiano aprendido por Alexandre em Veneza, que ele utiliza com Goffredo. Enquanto as duas se afeiçoam uma à outra quase instantaneamente, Goffredo precisa quebrar o gelo com Alexandre, cujo cenho franzido evidencia um peso de vivências passadas. Extremamente maduro, o garoto vai burilando os pensamentos do homem e, aos poucos, consegue entrar em seu universo antes tão fechado. La sapienza se revela, portanto, um filme para quem dispõe de tempo ou, pelo menos, está disposto a oferecê-lo. Tudo repousa em situações prosaicas, e o extraordinário advém da observação de recantos belíssimos construídos pelo homem em contraste com a perfeição da natureza, apresentados pela câmera detalhista de Green, que aposta em ângulos inusitados, fazendo as vezes dos olhos de Alexandre e Goffredo em suas caminhadas pela cidade.
Em última instância, esse também é um filme sobre a beleza, a começar pelo elenco, mas não uma beleza qualquer, e sim aquela herdada da antiguidade greco-romana. Tal conceito também pode ser relativizado, e roteiro do próprio Green não perde de vista essa possibilidade. Por outro lado, como é habitual (para não dizer inevitável) entre os artistas, sua obra reflete plenamente sua visão de mundo, seja esse reflexo consciente ou não. Nesse sentido, há um misto de desalento com otimismo impregnando os diálogos, e o encaminhamento positivo das discussões acentua o segundo aspecto, que pode levantar “acusações” de ingenuidade a quem espera uma postura mais fatalista do diretor. Mesmo assim, o discurso dos personagens inclui contraexemplos de suas convicções. Em certo momento, Alexandre admite que, mesmo sendo ateu, não deixa de se emocionar com a espiritualidade que envolve o ambiente eclesiástico.
O realizador teve sua filmografia revisitada em uma mostra ocorrida em Belo Horizonte, e aspectos recorrentes de sua obra foram postos em alto-relevo pela curadoria do evento, como o recorte sobre diferentes artes a cada filme. Se em longas anteriores Green se voltou para a música – A ponte das artes (Le pont des arts, 2004) – e para a literartura – A religiosa portuguesa (La religieuse portuguaise, 2009) – em La sapienza seu olhar se volta para a arquitetura e sua influência sobre os homens. De certa forma, o cineasta é também um arquiteto, que erige sua obra e almeja sua permanência, além de ter de se preocupar com a harmonia das formas, a luz e tantos outros elementos. Meticuloso nessa seleção, Green oferece um cinema de alta pregnância, e o plano final, mirando a imensidão do céu, relembra o quão vasto é o universo e o quão pequenos somos.
Louco pra ver! Quando o fizer, leio o texto. Green é top 5 diretores em atividade.
Veja mesmo, Nilmar! Filme grandioso e reflexivo como indico no texto.