A julgar pelo título nacional, Amar foi minha ruína (Leave her to heaven, 1945) é uma narrativa sobre um romance desventurado. A impressão vai se desfazendo à medida que se acompanha o desenrolar dos acontecimentos que ligam as trajetórias de Ellen (Gene Tierney) e Richard (Cornel Wilde). Na primeira cena, um diálogo entre dois senhores adianta que o enredo a ser apresentado já foi vivido, e o espectador é levado até o momento em que os então desconhecidos se viram pela primeira vez: enquanto viajavam de trem. É Richard quem nota Ellen antes, mas ela também manifesta interesse aos poucos. Mal sabe ele o quanto aquele encontro é decisivo para seu destino. E o título nacional parece se encaixar muito mais para ele do que para ela.
Acontece que Ellen é uma das figuras mais pérfidas do cinema, daquelas vilãs que despertam a vontade de apertar o pescoço e não deixar escapar. Seus olhos profundamente azuis são o exemplo perfeito do quanto, muitas vezes, associam-se de modo equivocado o conceito de beleza e bondade. A aparência angélica daquela moça em nada lembra o seu verdadeiro caráter, e somente o público é testemunha absoluta de sua capacidade de fazer mal a todos que estão em sua volta. Sem entrar em detalhes, ela demonstra seus sentimentos com exacerbação, sobretudo no que se refere ao desejo de posse da pessoa amada. Daí surgir o questionamento se Ellen é realmente capaz de amar ou se sua vocação é apenas destruir. A personagem é defendida com enorme competência por Tierney, cuja carreira floresceu na década do filme. Vinda de produções como Águias de fogo (Thunder birds: soldier of the air, 1942) e Laura (idem, 1944), ela imprimiu sua marca na galeria de megeras perigosas do cinema. Chegou a ser indicada ao Oscar por sua Ellen, mas a premiada daquela edição foi Joan Crawford, por Alma em suplício (Mildred Pierce, 1945), também muito merecedora.
Por sua vez, Wilde é o típico bom rapaz que cai na arapuca do próprio sentimento, não sabendo por muito tempo com quem está lidando. Nome pouco conhecido do cinema de seu tempo, ele acumulou papéis de pouca repercussão. Não teve a visibilidade de um Cary Grant ou de um James Stewart, mas vale dar chance para vê-lo em cena. Uma pista importante sobre o que o destino ao lado de Ellen está lhe reservando é dada pelo roteiro em seu início. A jovem lhe diz que ele parece muito com seu pai, figura adorada por ela e falecida recentemente, cuja cremação ainda estava por acontecer àquele momento. Aos poucos, vão se revelando as circunstâncias que culminaram com a morte do genitor, e o perigo que Richard corre permanecendo com Ellen. A traiçoeira é capaz de por fim ao noivado com Russell (Vincent Price) sem a menor cerimônia e, antes mesmo de rompê-lo, já está de compromisso firmado com Ellen. A mãe e a irmã sabem de seu histórico, mas pouco ou nada fazem a respeito de suas tramoias.
Considerado um exemplar do cinema noir – regido por personagens dúbios e mistérios a ser desvendados por um protagonista de faro detetivesco -, Amar foi minha ruína não segue plenamente as diretrizes do gênero. Seja em sua temática, seja nos aspectos técnicos, o longa subverte a tradição lançando um mocinho iludido por um longo tempo, além do uso do Technicolor, quando o normal era a fotografia em preto e branco, que ressaltava a natureza sombria da trama. Tal uso de cores se revela uma estratégia interessante, uma vez que contrapõe a escuridão da alma de Ellen com cenários de encher os olhos, sobretudo o rancho O Outro Lado da Lua, onde o casal passa uma linda lua mel (visualmente falando) e onde entra em cena Danny (Darryl Hickman), irmão mais novo de Richard, que está em processo de recuperação do movimento das pernas. No que se refere ao visual, o diretor John M. Stahl está mais para Douglas Sirk do que para Jacques Tourneur. A certa altura, Ellen e Danny estão a sós em um barco, e ela já demonstrou à plateia, muito mais do que a Richard, o quanto está amuada pela presença de mais alguém no refúgio do casal. O que acontece ali é melhor não contar para não estragar o impacto da surpresa mas, décadas mais tarde, a sequência serviu de inspiração – consciente ou não – para Aguinaldo Silva em sua novela Duas caras (2007-2008), guardadas as devidas proporções, é claro.
Voltando à questão do título – dessa vez, o original -, a frase foi tomada de empréstimo de Hamlet, uma das peças mais lembradas de William Shakespeare. Em tradução livre, significa “que o céu a julgue”, e sua aplicabilidade se torna clara para o espectador que acompanha a história até o fim. Ellen é daquelas que arquiteta muito bem seus planos, tornando difícil pegá-la, mas mesmo o mais esperto dos vigaristas pode deixar seus furos. E tudo em nome de um ciúme doentio, cada vez mais distante do real conceito de amor, que, afinal, não combina em nada com posse ou sufocamento. Porém, o mais perigoso de tudo isso é que Ellen é uma presença magnética, atraindo o olhar para si e gerando expectativa (ou apreensão) quanto ao seu próximo plano. No fim das contas, o espectador também não passa ileso pelo charme sedutor dessa mulher ardilosa.
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