SHIN GOJIRA – BUROCRATICAMENTE VISCERAL
Godzilla Resurgence (シン・ゴジラ, Shin Gojira, 2016). Fonte: Adoro Cinema
O novo retorno de Gojira pelas mãos do estúdio Toho parte da prerrogativa do inconveniente burocrático do estado japonês. Um estudo intrigante sobre alguns meandros da governança nipônica ao lidar com grandes tragédias. Algo de certa monta constante naquele país, de conflitos históricos de guerra, de alocações perigosas de usinas nucleares em sua matriz energética à desastres naturais. Ou uma junção de alguns destes, como fora no descalabro de Fukushima (Usina Nuclear Fukushima Daiichi) a 11 de março de 2011. Central Nuclear de Fukushima I, localizada na cidade de Okuma, distrito de Futaba. Ilha de Honshu. Administrada pela The Tokyo Electric Power Company Holdings, Incorporated (東京電力ホールディングス株式会社, Tōkyō Denryoku Hōrudingusu kabushiki gaisha, TEPCO, aka Tōden (東電)) – com 6 reatores nucleares e construída em 25 de julho de 1967. Status: Descomissionada. O evento em Fukushima citado teve como elemento primordial um terremoto feroz que criara uma puta tsunami e que atingira a usina assim superaquecendo (inundação de geradores de resfriamento) e derretendo 3 reatores nucleares, assim causando terror nas áreas circundantes da usina. Material não renovável. A fissão nuclear é gerada através de reações químicas no núcleo atômico de determinado elemento [urânio-235 – especialmente – e plutônio-238 (não natural), ou até o tório-232], que assim liberam vultosas quantidades de energia, que são transformadas em eletricidade. É a quebra da estrutura dos átomos envolvidos. Só elementos inocentes quando destroçados pela ação dos sujeitos. E tome lixo radioativo no processo. E há todo o aparato governamental que buscasse resolver a questão do Godzilla. Passando por todo um arcabouço processual tramitoso que travava um expediente mais desenvolto do problema. Nisso, o Shin Gojira, acaba por se inspirar em sua mordaz crítica a esses abusos. Gojira é atômico. Sua história sempre se entrelaça nessa dinâmica. E aqui o monstro surge e várias idiossincrasias burocráticas políticas são expostas para que se lide com essa figura, de tal maneira que o anormal passa a evoluir enquanto as soluções programadas pelos humanos passam, ao largo da ineficiência. E tome repetição nisso tudo.
A burocracia japonesa. Godzilla Resurgence (シン・ゴジラ, Shin Gojira, 2016). Fonte: X
Há um aumento de cortes para mostrar o caos inicial sob a perspectiva política diante da aparição do primordioso fera, de autoridades policiais e do povo. Atravessamentos de informações e reuniões diversas. O travado procedimento político da ação mediante uma desgraça desconhecida. Façanha a cargo, inclusive, de responsabilidade da Força de Autodefesa do Japão [FAJ](自衛隊, Jieitai) – criada logo após o fim da ocupação dos EUA (14 de agosto de 1945 à 28 de abril de 1952) no Japão no pós segunda guerra mundial. Possui Forças de autodefesa Aérea (Aeronáutica), Terrestre (Exército) e Marítima (Marinha), e conta com orçamento anual estimado em US$ 50.3 bilhões de dólares (conforme o censo de 2020). A definição dos planos de fotografia aponta pelo caminho desta burocracia. A exemplo do travelling lateral que percorre sobre os participantes em assembleia por trás de uma imensa mesa, mostrando vagarosamente o tamanho do debate acerca das causas do início do desastre. Com direito a um trecho de frases cabal que serve como microcosmo daquilo que a fita quer incidir criticamente: "Portanto, sugiro a realização imediata de uma reunião de gabinete. [...] Nesse caso, vamos para a sala de conferências principal". Uma reunião sobre um assunto doutra reunião para qual um grupo menor que precisa se reunir. E o Gojira metendo a sola enquanto isso. Há também planos milimetricamente estáticos das intermináveis reuniões (com um uso excelente da profundidade de campo, que cumpre a função de um exagero administrativesco de mesas imensas, salas de escritório e uma vastidão de burocratas no comprido de uma perspectiva de idas longas a pontos de fuga diegéticos que no fim não permitem uma saída daquele espaço). A tradição japonesa diante de suas características especificamente papelocráticas sendo posta em crise. Mesmo que seja uma situação sem precedentes naquele universo, o desumano continua a mover-se e a descer a chibata em tudo a sua volta enquanto as reuniões continuam. Óbvio que se precisa discutir e pesquisar dentro de uma égide de escolha de operação, porém aqui se usa desse espaço como simbolismo dos descomedimentos do Japão para a resolução de seus próprios transtornos internos. Com direito a uma utilização dos escritos e regras em tela. E as normas a seguir. Os passos a dar. Enquanto as regras são escrevinhadas na imagem, os personagens mostram-se enjaulados na burocrância, esparramados diegeticamente atrás das frases. Sagaz pra cacete este artifício. Nisso o bárbaro continua dando os seus passos. O excesso de confusão da governança é montado entre cortes de destruição de uma criatura em transfiguração. Uma emergência dobrada. E contraste da pensada – repensada – burocracia humana com os instintos de um monstro. Do burocratismo realista batendo na versão mais virulenta do Gojira em toda a saga.
A segunda fase do Shin Gojira. Godzilla Resurgence (シン・ゴジラ, Shin Gojira, 2016). Fonte: Boca do Inferno
Uma anomalia em evolução. Como noutras monstruosidades de fitas da Toho, tais quais a Mothra, Biollante e Destoroyah, por exemplo, que vão evoluindo no decorrer de suas aparições, o bicho desta vez é exageradamente anormal e esquisito em todas as suas fases. Com sua origem explicitada em mutações radioativas de 60 anos atrás (cooptado pelo lixo radioativo liberado nos mares). Que bate mais ou menos na data do primeiro filme de 1954 {Godzilla (ゴジラ, Gojira, 1954)}. É a saga Godzilla sempre a referendar criticamente a participação de seu país nos usos e abusos da tecnologia de fissão nuclear. Aqui reside a frontalidade, esse eterno retorno temático que se diversifica, mas segue lua lógica orbicular ao propor os japas como também muito responsáveis por suas fatalidades. A forma de entender como simbolicamente a energia nuclear mudara no Japão, e os Gojira movies meio que acompanharam isso. O desastre de uma besta gigante nos anos 50 remetia à explosão de bombas atômicas norte-americanas em território nipônico – a bomba Fat Man [plutônio 239; 3,2 m de comprimento; 1,5m de diâmetro; massa de 4,5 x 10³kg; rendimento de 21 x 10³kg de TNT; lançada a 503m do solo; com estimativa de destruição de 35% das construções; mortes até o fim 1945 numa casa entre 60 e 80 mil pessoas; com a majoritária causa de mortandade por queimadura (95%)] lançada por um avião B-29 em Nagasaki na data de 9 de Agosto de 1945, no horário de 11h02min; e a Little Boy [urânio 235; 3,0m de comprimento; 0,7m no diâmetro; e massa de 4,4 x 10³kg; rendimento equivalente de 16 x 10³kg de TNT; lançada a 600m do solo; com proporção destrutiva de 92% das construções; mortes até o fim 1945 numa casa entre 90 e 166 mil pessoas; e a predominante causa de óbito por queimadura (60%)] e rebolada em Hiroshima pelo Enola Gay (modelo B-29 Superfortress) em 6 de agosto de 1945, no horário de 8h15min. Ambas fabricadas pela batuta do Projeto Manhattan, capitaneado pelo físico Robert Oppenheimer. Aqui o caso era que a monstruosidade gojirosa representava um mal contínuo da radiação que o Japão apropriara para si no fabrico energético. E, principalmente, na forma como lida com esta mesma energia quanto houveram desastres para com ela. Assim como a história perpassa e subverte alguns assuntos diante de permanências e rupturas, o Godzilla se transmuta não só diante dos seus mais variados filmes no decorrer de sua jornada de décadas, mas dentro de uma mesma fita. E como diabos os asiáticos japas vão lidar com esta situação? Com esta besta que se metamorfoseia mais rapidamente do que o país consegue acompanhar com seu vício burocrático de resposta aos contratempos e controle de danos. A transformação do bicho serve tanto para o enriquecimento duma tensão narrativa absolutamente útil ao material final tanto quanto uma alegoria à política nipônica e seus percalços interiores. O que está nos arredores se modifica e a dificuldade de acompanhamento além de preconizar um atraso, serve como lembrete de um perigo a assombrar a região.
Inclusive, o formato narrativo é ajambrado duma maneira a condensar a parte humana como circular mesmo, repetitiva em sua existência e os usos dos planos que citei acima, são executados para dar a impressão de ineficiência e desamparo pela falta de empreendimento certeira dos governantes, que perdidos ficam diante dos entraves tradicionais presentes em sua própria política. É aí que o processo de metamorfismo evolucionário contínuo do Gojira serve de contraponto brutal à lerdeza dos homens. A velocidade de sua permanência diversificada como uma parede quase intransponível pela incompetência em lidar com paquiderme. As rimas – seja com a inépcia serumanista e a evolução do monstro; ou dos empregos de energia nuclear e ter uma criatura assolando o país criada a partir desta mesma fonte; ou os erros históricos convertidos em outros – não são novidades na saga, porém a forma com a qual as mesmas são dispostas e assim se confabulam é sensacional. Substancialmente pelas seleções que primam expor todas estas situações sem cerimônia e mostrando que perduram elementos históricos que permanecem não somente no inconsciente coletivo, mas forçados a uma interminável teimosia de continuarem a persistir. Nisso que entra até as homenagens aos filmes anteriores.
Godzilla Resurgence (シン・ゴジラ, Shin Gojira, 2016). Fonte: Boca do Inferno
A grandiosidade desse cara é bem arrumada, méritos para os diretores Hideaki Anno e Shinji Higuchi. A destruição é crescente, contínua e brutal. Ao mesmo tempo que dolorosa, afinal a evolução do monstrengo é regada a sangue e desespero. Os olhos. A dor. As consequências da ação do homo sapiens. Godzilla imparável, poderoso e inesgotável, mas ainda assim uma vítima. A sua forma escura, feroz e cheia de fissuras vermelhas que servem como ilustração alegórica dos ferimentos de sua evolução. E essas feridas são obviamente históricas vinculadas ao Japão e sua gama complexa de relacionamentos com radiação, energia e política. Godzilla como o mal completo e absolutamente inescapável. Algo que o seu visual pútrido e de fases nojosas o torna unicamente inesquecível. Uma criatura que representa o erro, mas também é uma vítima de sua presença acidental e demasiadamente torturante. O radicalismo intenso do monstro cheio de rusgas e formato grosseiro remete ao mal encarnado. Criado por questões escusas e acordado para incendiar os seus arredores enquanto contempla sua própria existência de dor e bestialidade. Foda. O detalhe do rastro radioativo que ele deixa na água referenciando tragédias dessa envergadura. A destruição que causa com seu poder é tão brutal, visceral e imensa quanto linda em termos de imagem. Uma ópera audiovisual do descalabro monstruoso. A câmera vai aumentando sua duração de contemplação dos planos a partir do crescimento do animal imenso. Hão de haver os usos de trechos da trilha original do Akira Ifukube. Sensacional. Trecho em áudio mono, como em 1954. Instila ainda mais o caráter tanto de grandiosidade quanto de relevância histórica do personagem. O que não impede que a música original de Shirō Sagisu também seja joia. Falando em zuada, é mantido e urro clássico do sujeito bicho Gojira – assim como os efeitos sonoros dos tanques também são os mesmos de 54. A feitura dele fora concatenada através da tecnologia de captura de movimento (as fases últimas dele), ou seja, o primeiro Godzilla japonês feito em CGI. Inclusive se manteve o visual corpulento e borrachudo que relembrasse obras mais antigas da franquia. E havia um animatrônico sensacional do busto do monstro, mas que ao que parece não fora utilizado. A equipe responsável entendeu bem demais a gênese visual e representativa do Godzilla. O que nos traz a cena de estrago em Tokyo que entra num hall entre as cenas mais memoráveis de destruição em massa de toda a franquia. A decupagem é sensacional ao demonstrar o tamanho da criatura e seu poder, assim como compõe a isso o caráter trágico da mesma. A aplicação das cores como rosa e o amarelo/laranja do fogo frente a escuridão de uma cidade em evacuação. E a trilha sonora do citado Shirō Sagisu, existe dramaticamente contemplativa frente ao estraçalhamento perpetrado. Demonstração de gigantismo, história, violência e destruição.
A participação americana no conflito é proposta num aceno crítico às subserviências aos yankees por parte de autoridades japonesas. O americano é o pilantra que realmente não aparece. "Japão é um estado tributário", é afirmado por uma figura. Refém de um imorredouro pós-guerra. O eterno retorno do desfazer destrutivo japonês para se reconstruir. Hiroshima e Nagasaki ainda permanecem na memória coletiva – ótimo. E se enseja que este excesso de tributo é absortamente negativo e quaisquer dívidas que o Japão tenha tido no passado, já foram, em absoluto pagas – as adversidades enfrentadas no pós bombas já servem como dividendo da questão aliás. A estratégia de detenção do gigantesco. Após o grosso da truculência militar não resolver porra nenhuma, um grupo de cientistas e desgarrados outros {Godzilla Minus One (ゴジラ-1.0マイナスワン, Gojira Mainasu Wan, 2023) joga os militares pra cima e aposta ainda mais em figuras fora do eixo das forças armadas, inclusive com mais ênfase nos desgarrados}, bolam um esquema para barrar a figurona. E ocorre dentro do esquema de possibilidades materiais diegéticos dos filmes com uma música – metida a militar inclusive – a ditar um ritmo de urgência. E o bicho congela. O plano da imagem final da cauda do Godzilla é sensacional. A possibilidade que aquilo viria a acarretar. A evolução desse monstro segue em curso. Conseguiram somente desacordá-lo por um tempo. Como uma tranquilidade passageira a espera doutra intromissão humana descalabrosa que traga à baila a próxima calamidade. E como a nossa condição age em prol da destruição de sua própria existência aos poucos, o Gojira se mantém adormecido, mas não tarde dele acordar. E também não tarda tanto para fazermos merda.
Gojira tocando o terror visceralmente. Godzilla Resurgence (シン・ゴジラ, Shin Gojira, 2016).
Fonte: Flawed Diamonds
Parte do especial Monstruosidades Imensas
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