O ser humano é dotado de uma extraordinária capacidade de adaptação, seja ela voluntária ou compulsória. Certas vezes, entretanto, essa habilidade só é descoberta quando surge a vontade ou a necessidade. O caso de Ruben (Riz Ahmed) é o segundo: adicto de todas as drogas (em suas próprias palavras) e baterista voraz, ele é pego de surpresa por um drástico desaparecimento quase total de sua audição. Tremenda ironia, já que é o sentido mais necessário em seu ofício musical, mas, ao mesmo tempo, é uma consequência previsível de anos exposto a frequências sonoras altíssimas. Imaginar o tamanho de seu problema não é tão difícil: quem nunca passou por aquele incômodo de ouvir os sons abafados em viagens terrestres por montanhas ou voos em decolagem ou aterrissagem? Se tal sensação de quase surdez já causa muito desconforto, qual não será o desespero desse rapaz em ver que sua condição não passa em alguns minutos ou com um simples exercício de reequilíbrio da pressão atmosférica?
Assim está posto o argumento de O som do silêncio (Sound of metal, 2020), cujo plano de abertura já trata de embarcar o público numa jornada a partir da perspectiva de Ruben: sua namorada reverbera a voz cavernosa no microfone e ele quebra tudo com suas baquetas sobre os pratos e os pedais certeiramente acionados. Essa imersão é obtida a maior parte do tempo no longa, que poucas vezes nos deixa acompanhar a história como ouvintes. Uma vez constatado seu problema, ele se vê confrontado com uma nova demanda em sua vida. Como se já não bastasse a luta que precisa travar para continuar limpo, mesmo depois de quatro anos da última dose, coincidentemente, a duração de seu namoro com Louise (Olivia Cooke). Assim, ora escutamos os sons de forma nítida, ora percebemos como Ruben está tendo – ou não, a partir de certa altura – acesso a eles, num fantástico trabalho de edição de som que reúne quinze profissionais que merece o devido reconhecimento da Academia.
E a difícil missão de encarnar com alma e corpo esse protagonista foi entregue a um rosto ainda pouco conhecido da maioria. O anglo-paquistanês Ahmed vem de uma carreira bem-sucedida no cinema e na música, mas também já deu as caras na televisão. Foi indicado a prêmio e ganhou dois deles, portanto, não é alguém que surgiu agora. Seu papel de mais repercussão até então era em O abutre (Nightcrawler, 2014), em que viveu um repórter cinematográfico em uma busca honesta por ascensão. Certamente, sua experiência como rapper, iniciada há mais de uma década, contribuiu muito para compor Ruben, seja nos trejeitos, seja na familiaridade com alguns equipamentos musicais. O corpo cheio de tatuagens e o cabelo descolorido com raízes pretas, assim como as roupas largadas, compõem o visual de alguém que já deu e levou rasteiras, mas hoje só quer um paradoxal sossego inquieto vivendo de sua arte musical. É um ator para se prestar atenção, que está para brincadeira.
Talvez uma das maiores armadilhas do roteiro fosse a de cair uma batida lição de moral. O texto foi escrito a seis mãos, entre elas as de Darius Marder (também o diretor) e Derek Cianfrance, este último responsável por Namorados para sempre (Blue Valentine, 2010) e O lugar onde tudo termina (The place beyond the pines, 2013). Aliás, o estilão de Ruben lembra muito o de Ryan Gosling neste último, evidenciando uma sutil correlação entre as duas obras. Contudo, o trio conseguiu escapar dos clichês moralistas e fez o personagem atravessar sua crise de outra maneira. A mensagem da reinvenção está lá, mas delineada por meio de outras estratégias narrativas, altamente eficazes para gerar empatia em que assiste a ele. Quando vai parar na comunidade para surdos, é recebido com afeto por Joe (Paul Raci), seu idealizador e ele mesmo um exemplo de reconstrução, também com um passado de vício. O intérprete é outra escolha acertada para o elenco, e de sua boca saem as frases mais reflexivas do longa, em especial na sequência em que ele explica a Ruben que os moradores dali partilham da crença de que a surdez não é algo a ser corrigido, mas uma forma de viver no mundo. Assim, sem passar a mão na cabeça e sem didatismo exacerbado.
Assim, sem apontar soluções definitivas ou gerais, O som do silêncio é a chance de uma experiência imersiva de recodificação do mundo sob quatro sentidos. Excluída a audição, ainda restam muitos meios de acesso a pessoas e sensações, mas até que esse novo jeito de ser esteja consolidado, o caminho é árduo. Ninguém disse que seria fácil, e se alguém disser, está prometendo uma ilusão. Ruben tenta recuperar o que era, mas esse antes pode ser resgatado? A que custo? E vale mesmo a pena? São perguntas que Marder lança de forma discreta, omitindo palavras e deixando a imagem dizer, e o silêncio pode ser mais eloquente do que um mundo de sons.
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