No dia a dia banal e vulgar de uma cidade polaca, é-nos apresentado um conjunto de vinhetas que têm o ato ou o impulso de matar como denominador comum. É verdade que Krzysztof Kieślowski, o realizador deste «Não Matarás», se irá centrar nas relações dramáticas e trágicas que irão unir três personagens (o taxista, o jovem assassino e o advogado inexperiente e pouco seguro de si). Mas o realizador vai mais longe: com esta versão expandida do quinto episódio da mítica série televisiva «Decalogue», de sua autoria, na qual perseguimos uma panóplia de personagens que sonham, refletem ou desejam destruir algo, ou alguém - e a maior parte desses desejos refletem-se em pequenos gestos e intenções subliminares, mostrando que a morte não se limita apenas à forma física de a concretizar, diversificando-se nos outros (e arrepiantes) sentidos do termo. E quem será mesmo o mau da fita nesta história tão bem contada e pensada: algum dos pequenos membros da comunidade cujo quotidiano acompanhamos a cada passo? Ou todo um sistema que, por meios psicológicos e subversivos, consegue ser ainda mais mortal do que tudo aquilo que as personagens poderiam fazer, em prol da aniquilação, se se juntassem para formarem um esquadrão de luta pelo falecimento? «Não Matarás» fala das várias mortes que assolam as grandes metrópoles, as pessoas "inocentes" que nelas se passeiam, e os "assassinos" que as planeiam pelas mais variadas maneiras - e não falamos apenas dos que matam mesmo no sentido prático da questão, é preciso voltar a lembrar...
As três personagens tornam-se o centro das atenções da visão suja, negra e obscura que Krzysztof Kieślowski retira da vida urbana na Polónia, e encontram-se por causa dos objetivos obscuros de uma delas. Dois homens fazem a destruição alheia, em níveis mais ou menos graves de impacto emocional e físico, enquanto que o outro testemunha apenas o processo que leva o criminoso a ser dominado pelo sistema judicial, e pelas razões tão diretas e objetivas que comprovam a sua culpabilidade naquele crime estranho em que esteve envolvido. «A Short Film About Killing» é isso mesmo, uma obra curta, que não chega a uma hora e meia de duração - mas isso não a impede de conseguir suscitar no espectador uma sensação poucas vezes conseguida. Uma provocadora análise da natureza do ato de matar, da morte física e da morte social (que pode ter consequências semelhantes à da primeira - o desaparecimento do indivíduo, ou a sua exclusão, da comunidade em que está inserido, pode atribuir-lhe o estado de "morto" de forma instantânea - é o poder do coletivo sobre a condição miserável de se ser "uma parte do todo"), e uma fascinante metáfora sobre o ciclo de crime, castigo, culpa e rendição que não pára de surpreender e de obcecar a mente humana... e a sua cultura. Kieślowski criou um filme com intenções muito específicas, e que dentro da sua pequenez consegue, por elas, ser maior do que muitos dos "grandes". É claro que, por levantar muitas questões, «Não Matarás» não pode ser visto apenas por uma única e objetiva interpretação (aliás, serão interessantes todos os debates que tenham como tema as mensagens da fita). Mas é o que pretende o cineasta: a partir de uma visão rígida e elaborada do Real, apontar todos os caminhos que circundam estas temáticas, à medida que consegue, também, criar um estudo sobre a manipulação que cria em nós, simples visitantes deste mundo trágico e fatal, mas cuja consciência se deixa levar pela mais pura das ilusões cinematográficas.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário