Grace possui aparência de princesa e vive num mundo de redoma criado por seu pai, tal qual um castelo de contos de fadas. Ela, no entanto, por conta de seu senso moral, é incapaz de aceitar as atividades ilícitas do pai, um poderoso gângster. Na sua cabeça, ele é arrogante por tirar a vida das pessoas. O pai acredita que esse é o único modo de manter a ordem das coisas funcionando. Ela, então, tenta provar o contrário, se refugiando numa pequena vila chamada Dogville e praticando a bondade até as últimas consequências.
Dogville é uma cidade visualmente estranha aos olhos de quem assiste ao filme. Quase tudo é representado por marcas de giz no chão, das paredes, portas e janelas das casas ao cachorro de um dos moradores. O “cenário” da vila é delimitado por telas brancas, de modo que é impossível ver para além dos limites diegéticos do local, o que causa uma claustrofobia desconfortável, que contrasta com a extrema liberdade da ausência de muros físicos – vale destacar aqui o grande trabalho de iluminação de Anthony Dod Mantle. Essa estrutura pode adquirir vários significados, seja reforçar a ideia de que tudo ali não passa de uma ficção (com atores fingindo estar colhendo frutinhas ou abrindo portas), seja representar a ideia de que, num ambiente tão pequeno, é impossível guardar segredos e tudo se torna público, seja ainda dispor de supérfluos para mergulhar de cabeça na essência.
O filme possui duas leituras imediatas. Uma delas, a mais difundida, é uma polêmica crítica à sociedade estadunidense, duramente rebatida pelos yankees, que acusam o diretor de inconsistência por nunca ter pisado o solo americano e falar com tanta arrogância sobre os costumes de lá. Válida ou não, a leitura é sustentada por elementos bem visíveis. Grace é uma “estrangeira” que chega aos EUA (representado microcosmicamente por Dogville), uma nação de “cachorros” que agem mecanicamente na maior parte do tempo, seguindo protocolos e regras vazias. Apelam para a democracia a todo instante, quando na verdade são uma única massa de manobra acéfala, que ora é liderada por um núcleo pacifista, idealista e inerte (Tom), ora por um ideal xenofóbico, explorador e egoísta (Chuck, principalmente).
A acusação mais mordaz, porém, toma lugar quando a polícia, em uma segunda visita à vila, coloca um cartaz de “procurado” na parede da igreja, no qual constava a informação de que Grace havia roubado um banco. O policial, perguntado por um dos moradores, respondeu que o roubo havia ocorrido há duas semanas, o que seria impossível, já que Grace não havia saído de Dogville. Os habitantes da cidade logo perceberam que se tratava de pura pressão da polícia (representando aqui o governo em geral), mas, mesmo assim, mudaram o tratamento com a estrangeira e, com o tempo, compraram a ideia. Esse acontecimento procura demonstrar o quão fácil é para o governo dos Estados Unidos (dominado por “gângsteres”) transformar qualquer um em criminoso através de um sistema de dominação pelo medo. Além disso, traçando um paralelo com o contexto histórico no qual o filme se situa (ano de 2003), é possível considerar essa sequência uma analogia com a mentira criada pelo governo Bush para invadir o Iraque (sobre a posse de armas de destruição em massa por parte de Saddam Hussein) e forjar uma imagem completamente errada do Oriente Médio. O final da obra, com a vila em chamas e seus moradores mortos pelos “terroristas”, talvez seja um recado de Von Trier sobre o que os americanos merecem. Com o 11 de setembro ainda fresco na memória, tamanha polêmica não poderia ser laureada com a Palma de Ouro, por mais que o favoritismo estivesse claro, tendo, assim, vencido o morno “Elefante”, de Gus van Sant.
A segunda leitura de “Dogville”, mais abrangente, vai mais longe, de volta aos tempos bíblicos. Grace, na verdade, seria a personificação de Jesus, a mais famosa “graça” divina que se tem notícia. Enviada para aquela terra com o intuito de fazer o bem e perdoar, passa por um verdadeiro calvário de explorações e torturas, com direito até a uma simbólica crucificação (representada aqui pela roda e corrente). Sua morte ocorre, de forma figurada, na rejeição da cidade ao apoiar a expulsão dela (rejeição da crença cristã?). Quem é a busca é seu pai (sim, Deus), que, no ponto alto de todo o filme, explica o porquê de toda a cerebral e doentia experiência criada minunciosamente por Lars Von Trier. Perdoar sempre, como diz o cristianismo, é errado, pois a misericórdia impede que as pessoas aprendam com seus próprios erros, mantendo-as num ciclo de imperfeição. Além disso, seria arrogante não dar a oportunidade do aprendizado através da punição. Assim, para o benefício de outras cidades, da humanidade e do próprio ser humano, Dogville (que poderia ser “Godville”, se as letras da palavra “dog” fossem invertidas) é queimada e seus habitantes são mortos, como aconteceu em Sodoma e Gomorra. Ponto para o cachorro Moisés (cujo “osso” havia sido figurativamente roubado no início da obra), o único sobrevivente do massacre. Ponto para o Velho Testamento (que conta a história de um deus de punição) sobre o Novo Testamento (que ilustra um deus de perdão).
É difícil não se contaminar com a misantropia típica do cineasta, aqui defendendo, com uma lógica tão precisa quanto maquiavélica, o quão vil o homem pode ser. “Dogville” é cerebral a um ponto que chegamos a pensar que nós mesmos seríamos capazes de tais atrocidades, afinal já as praticamos no passado. Ao final desse sombrio “evangelho segundo Lars Von Trier”, não parece haver salvação num mundo-cão onde apenas o poder (seja ele ideológico ou físico) tem importância, apenas a extinção.
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