Popularizado na obra de grandes expoentes italianos, como Roberto Rosselini (Roma, Cidade Aberta, 1945) e Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948), o neorrealismo italiano caracterizou-se por seu papel social e denunciativo, enfocando as camadas mais humildes da sociedade e suas provações de maneira crua e direta. Nesse contexto, delimitado por curto período de grave crise econômica da Itália pós-guerra, um jovem colaborador molda sua personalidade artística e desponta no cinema italiano: Federico Fellini.
Após co-dirigir Mulheres e Luzes (Luci Del Varietà,1950), este cineasta estreia solo na direção em Abismo de um Sonho (Lo Sceico Bianco, 1952), sendo desde então questionado por distanciar-se do movimento cultural vigente. Criando uma obra não somente crítica, como alegórica, extravagante e, em muitos momentos, particular, surge o estilo “felliniano”, cujo marco é identificado em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960).
A trama gira em torno de Marcello Rubini (Marcello Matroianni), um repórter sensacionalista mulherengo e frustrado, cujo verdadeiro desejo é tornar-se escritor. Responsável pela cobertura dos mais variados eventos, Marcello apresenta a capital italiana e seus costumes num período de aparente glamour e prosperidade.
A narrativa confeccionada por Fellini, metaforicamente, pode ser descrita como uma colcha em que os retalhos são situações quase sempre independentes, cujo único ponto congruente é o protagonista do longa. Essas histórias, tão heterogêneas e aparentemente dispersas, logo formam um mosaico bem delineado, retratando a sociedade romana da virada dos anos 50 sob a plenitude de sua decadência moral, com uma abordagem plena de simbolismos.
Mesmo quando o cenário é a alta sociedade, tomada por personalidades e artistas estrangeiros, conforme as situações desenvolvem-se o espectador questiona a veracidade daquela onda de euforia e otimismo à qual fora previamente apresentado. Desmascarando pessoas essencialmente hedonistas, os diálogos deflagram notável grau de tristeza nas pessoas e em suas relações, em geral bastante frágeis e superficiais. Eis o fruto de uma cidade que produz e consome o fútil, como visto na idolatria à unidimensional (e linda) estrela de cinema (Anita Ekberg) ou quando uma suposta aparição religiosa, dessa vez no subúrbio de Roma, torna-se um show com fim trágico.
Importante componente desse lamentável quadro é a absurda ação dos paparazzi – termo cuja atual conotação tem origem no longa abordado. Esses “profissionais” onipresentes, sem escrúpulos ou limites, chegam ao ponto de instigar brigas e aventurar-se em perigosas perseguições automobilísticas – fato que, coincidente, tornou-se manchete nos jornais quase 40 anos depois, quando repórteres fotográficos foram acusados de perseguirem a princesa Diana pouco antes do acidente que provocou a sua morte, em 1997.
No entanto, a peça-chave para a compreensão da história reside na interpretação de seu protagonista. Comumente interpretado como um sujeito cínico, muito por conta de sua postura demasiadamente blasé diante de situações diversas e adversas, Marcello tem o olhar tão desencantado quanto sóbrio, de quem entende a insignificância da sofisticação à sua volta. Ironicamente, Rubini consome o vazio do meio como forma de suprir o vazio em si, em jogo tão irônico e ambíguo quanto o título do filme. Não é à toa que o personagem seja apontado como alter-ego de Federico Fellini.
O diretor, ao conferir maior complexidade ao personagem, não somente revela o lado afetivo de Marcello Rubini, como justifica sua resignação e entrega ao hedonismo. Em dado momento, o jornalista passa a alternar momentos de alegria, como ao encontrar seu pai, de admiração, manifestada para um amigo inteligente e bem-sucedido, culminando em surpreendente romantismo, declarando-se à mulher que tanto o deseja. Em todos esses episódios, porém, Marcello torna a experimentar o paladar amargo de uma vida tão doce quanto plena. Ou seja, rigorosamente vazia.
Assim, a indiscutível atemporalidade temática presente em A Doce Vida o transforma num clássico definitivo que surpreende por ser mais facilmente compreendido nos dias de hoje do que em seu tempo, quando as alegorias e simbolismos com que seu realizador construiu a narrativa foram confundidas como ode a tudo aquilo que condenava. E ainda que os neorrealistas condenassem - e considerassem como desvio de foco - o estilo inovador e ousado implementado pelo jovem cineasta, a crítica social na obra felliniana é tão pungente quanto em seus antecessores - e não fosse sua singularidade artística, hoje o nome de Federico Fellini dificilmente se encontraria no rol dos maiores diretores de todos os tempos.
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