Atuações marcantes e surpreendentes, um roteiro poderoso com diálogos retos. É assim que podemos definir Dúvida, um dos melhores filmes do ano que passou.
Os amantes de cinema já se acostumaram. Adaptações de peças teatrais para o cinema já não são novidade desde a época em que as obras literárias do lendário escritor inglês William Shakespeare começaram a virar filmes. Entretanto, não estou falando das histórias de Hamlet, muito menos do amor impossível do clássico Romeu e Julieta e nem do Mouro de Veneza, Otelo. Desta vez, está ao meu cargo detalhar a experiência inusitada de assistir ao filme de John Patrick Shanley, dramaturgo americano que realiza em "Doubt", seu segundo trabalho como diretor cinematográfico. Sim, para quem pensava que Shanley não passava de um mero principiante comandante de filmes, saibam que ele foi o responsável pela direção de Jow Versus the Volcano, comédia romântica estrelada por Tom Hanks e Meg Ryan, datada de 1990. O homem nascido no Bronx pode não ser um experiente diretor de cinema, mas certamente não é esse o adjetivo apropriado para se referir a ele no posto de autor teatral, uma vez que um de seus trabalhos mais conhecidos, que vem a ser justamente a peça que deu origem ao filme aqui sendo criticado, ganhou o prêmio Pulitzer de Drama em 2005. E assim como no teatro, o texto de 'Dúvida', sob o comando daquele que lhe escreveu nos dois diferentes palcos, funciona perfeitamente, chamando atenção para as características mais ínfimas das personagens e dando ênfase para cada diálogo, salientando tudo o que há de melhor nele, a fim de facilitar o trabalho do atento espectador na arte de extrair o máximo de informações que lhe estiver às mãos.
Para tanto, seria necessária uma adaptação que estivesse no mínimo à altura da grande peça ambientada em Portugal. E para a felicidade daqueles que gostam de unir o cinema ao teatro, o roteiro de 'Dúvida' não poderia ter sido melhor escrito. E a escolha das filmagens segue a mesma linha. Gravando no mesmo bairro que nasceu o roteirista e também diretor Shanley, o roteiro do longa propricia algo além daquilo que fora planejado anteriormente para a peça teatral. Com a chegada do primeiro aluno negro na Escola St.Nicholas do Bronx, a vida da diretora Irmã Aloysius Beauvier vai se tornar um pouco mais complicada do que ela gostaria. Rigorosa, ela controla seus alunos a mão de ferro, exigindo sempre ordem e disciplina por parte deles. Na escola, trabalha a jovem Irmã James, que também leciona. Dentro da pacata e consecutiva rotina de todos aqueles que percorrem os corredores da instituição de educação, algo de muito polêmico vai dar pano pra manga. Acontece que o bondoso Padre Flynn vem causando certas discussões com seus sermões (hoje em dia chamados de "Homilia"), cujos temas vão desde a fé das pessoas, os pecados que elas imaginam ter cometido, até a própria dúvida, no sermão da cena inicial:
"-A Dúvida pode ser uma ligação tão poderosa e sustentável como a certeza."
E é justamente a dúvida que vai mover os instintos da Irmã Aloysius quando James relata a ela ter visto e encontrado vestígios de que o Padre Flynn e o aluno negro, Donald Miller, estivessem tendo um relacionamento exagerado, com intimidade demais. É a deixa para que a megera Irmã comece uma caçada em busca da verdade que ela supostamente já conhecia, tentando de todas as formas provar que ela estava de fato certa e expulsar o padre da escola.
Como já foi comentando, o roteiro adaptado para um longa-metragem trouxe a oportunidade para novas reflexões a respeito da história central, que gira em torno da suspeita de Aloysius em cima de Flynn e das sua relação tão "imprudente" (ao ver dela) para com um aluno que ela julga ser frágil por não ter amigos. Apesar de tratar de um tema completamente diferente, 'Dúvida' propicia uma discussão sobre o racismo que naquele ano de 1964 estava tão presente até mesmo nas escolas. O fato de Donald Miller ser negro e unicamente por esse motivo não ter amigos já é um fator que mostra como um assunto pode ser bem explorado através de outros ângulos. A culpa, inocência, a presunção, paranóia, religião, todos esses conceitos são mostrados de forma profunda, ainda que indireta por Shanley, que após vencer o Oscar de Roteiro Original por Feitiço da Lua parece ter aperfeiçoado ainda mais o seu dom de escrever.
'Dúvida', que mostra ser eficiente principalmente no roteiro, falha em alguns quesitos da direção do próprio Shanley. Ainda que não sendo graves, ocorrem alguns erros por parte dele que acabam por dando uma impressão um tanto incorreta de alguns personagens, que definitivamente não é culpa do elenco. No caso da Irmã Aloysius, apesar de falarem que Streep compõe uma personagem exagerada de gestos e expressões, acho que as suas atitudes, no que diz respeito ao que foi direcionado por Shanley que podem ter acabado dando essa má impressão à personagem, cujo final não funcionara de maneira clara e consistente para alguns. A Irmã James se mostra imatura, inocente e desorientada demais. Ainda que a culpa seja extremamente bem explorada em seu trabalho, Amy Adams parece "culpada" até demais. Na verdade, se o brilho do elenco aconteceu, é muito mais (e quase que totalmente) por mérito dos próprios atores do que pela direção de Shanley, que poderia ter sido melhor.
Mas já que mencionamos as atuações, não tem como eu acabar de escrever esse comentário sem mencionar o trabalho de cada um, não em seus mínimos detalhes, mas dando uma atenção individual a todos.
Irmã Aloysius Beauvier, por Meryl Streep
Nem é preciso gastar linhas para salientar que Streep é uma verdadeira dama do cinema internacional. Todos sabem disso, e muito bem. Em 2009, ela recebeu a sua 15ª indicação ao prêmio do Oscar, consagrando-se definitivamente a recordista de indicações entre as mulheres, ainda que seja também uma das maiores perdedoras. Apesar dos comentários ruins sobre a sua atuação em 'Dúvida', ao meu ver, ela deixa mais uma vez a fantástica marca da excelente atriz que é. Ela é própria megera, rigorosa e dura diretora de uma escola religiosa. Streep dá a sua personagem um tom de grosseria sem exageros, elegância, educação e disciplina como ninguém. Não é nem de longe uma de suas melhores atuações, mas isso não quer dizer que seu trabalho seja menor que ótimo.
Padre Flynn, por Philip Seymour Hoffman
É por essas e outras que hoje, Philip Seymour Hoffman é meu ator preferido. Depois de brilhar de maneira ofuscante em Capote, nada mais a respeito dele me surpreende. Uma atuação mais bem concretizada que a outra, trabalhos ainda melhores. E é com uma inteligência e uma simplicidade impressionantes que Hoffman constrói o carismático Padre Flynn. Como não se sentir bombardeado por seus sermões, seus olhares verdadeiros e uma própria aula singela de atuação. Philip Seymour Hoffman é hoje sim, um dos maiores e mais completos atores em ação, com verossimilhança para com todos os personagens, ele se supera mais uma vez, como um suposto bondoso padre.
Irmã James, por Amy Adams
A jovem italiana consegue mais uma vez surpreender por seu carisma impressionante e sua força de atuação sem igual. Apesar de, como eu já havia dito, sua personagem parecer inocente demais, não poderia haver atriz melhor para interpretar Irmã James. Qualquer um poderia pensar que Amy Adams parece ter nascido para ser uma freira, depois de ver este filme, pois qual é o tamanho do poder de interpretação que essa mulher tem, garantindo mais merecidíssimas indicações a vários prêmios pelo mundo, incluindo o Oscar.
Sra. Muller, por Viola Davis
E chegamos à ela. A maior e mais deliciosa surpresa do ano, Viola Davis. Quem poderia esperar que uma atriz amadurecida, inexperiente como ela, poderia ter sido capaz de tal feito? Em uma cena de poucos minutos, Davis imprime o seu talento da forma mais contundente e fiel possível à personagem. E nestes instantes, Meryl Streep torna-se uma formiga perto da gigante Viola Davis, que emociona a todos pelo olhar, lágrimas e diálogos impressionantes. Uma atuação magnífica, diga de uma atriz veterana, só que desta vez, pelo talento inexperiente desta que pode vir a ser uma das atrizes de carreira mais promissora do cinema atualmente.
Enfim, Dúvida é um prato cheio para quem curte um bom filme com um toque teatral especial. Apesar de não ser muito fã do gênero, considero este, um dos melhores longas de 2008, com uma força sem igual nas atuações, um roteiro brilhante e uma direção que poderia ter sido melhor, mas que mesmo assim garante um bom aproveitamento. Um filme de história deslumbrante, interessante e reflexiva. Imperdível!
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário