Já virou natural, na maioria das resenhas, elogiar Kubrick e colocá-lo quase que como um quarto elemento da fechada santíssima trindade do cinema. Mas já se avisa de início, sendo clichê, aqui se vai exaltar um dos maiores gênios do cinema no seu filme mais desafiador de todos: De Olhos Bem Fechados. Afinal, temas desafiadores sempre foram pratos que as mãos de Kubrick sempre souberam fazer muito bem. O filme conta a história de Bill (Tom Cruise) e Alice (Nicole Kidman), que formam um casal aparentemente normal. Certa noite, deixam a filha em casa com a babá e vão a uma festa. Lá, Alice é flertada por um senhor e Bill sofre investidas de duas lindas modelos. Em casa, no dia seguinte, em sua intimidade, o casal conversa sobre a festa do dia anterior. Ela o questiona a respeito das duas mulheres que o acompanhavam; ele questiona a respeito do homem que dançava com ela. A partir daí eles entram em uma conversa que sustenta o ideal do filme: sexo. Alice afirma que no ano anterior sentiu vontade de transar com um funcionário da marinha, que estava almoçando no mesmo restaurante em que eles. Bill fica estarrecido com a confissão. Mas não tem tempo de brigar, um dos seus pacientes morre e ele vai dar apoio à família.
Chegando lá, Bill é beijado pela filha do seu paciente, e ela confessa que o ama. Duas bombas para Bill no mesmo dia. Ele consegue se desvencilhar do problema e passa a caminhar sozinho pelas ruas para esquecer o ocorrido. Mas a imagem da mulher transando com outra homem atormenta-lhe, e vai vir-lhe à mente durante praticamente todo o filme. Andando pelas ruas, ele encontra uma prostituta que o convence de ir até o seu quarto, mas acabam não fazendo amor, pois Bill sente o peso da consciência na hora em que sua mulher liga em seu celular. Ele volta então às ruas para caminhar e, passando em frente a um bar, resolve entrar por ver o cartaz de seu amigo pianista, Nick, que estaria se apresentando ali naquela noite. Depois do show eles conversam por algum tempo. Nick tem outro trabalho naquela noite: tocar, como já há faz algum tempo, para um grupo de pessoas que não se identificam, sempre em lugares diferentes, os quais ele sempre acaba por conhecer uma hora antes do início do show. Ele toca vendado e não sabe quem são as pessoas, e para entrar ele precisa de senha. Mas em uma dessas noites, Nick diz que conseguiu ver algumas coisas, e se tratava de mulheres e sexo. Durante a conversa entre os dois, o contratante não identificado liga e Nick anota a senha em um pedaço de papel. Bill, curioso, pega a senha e, já tomado pelo desejo e curiosidade, convence o amigo a dar-lhe o lugar do encontro. Bill chega e encontra uma das sociedades secretas mais estranhas e misteriosas já vistas no cinema. Mas, pára-se por aqui. Seria melhor não dar mais detalhes sobre a narrativa para que quem resolva ver o filme não se sinta desanimado. Porém, o fio narrativo, a trama, em Kubrick, muitas vezes pode não ser o mais importante na obra. Os toques e detalhes técnicos são de um dedo cinematográfico impar.
Os diálogos e as cenas nos filmes de Kubrick têm um caráter muito natural. As cenas não são forçadas, há uma naturalidade que endossa uma proximidade com o cotidiano que não é vista em praticamente nenhum outro cineasta. Pode até ser paradoxal, mas apesar dessa naturalidade, há um quê de estranheza na maior parte das cenas, o que sempre nos leva para o outro lado: ninguém faz isso como Kubrick.
Outra característica peculiar nos filmes kubrickianos é a posição da câmera. Não se tem um close muito forte, a câmera não se mantém nem tão distante nem tão próxima das personagens. Isso faz com que a imagem possa captar as expressões dos atores bem como a totalidade da cena, afirmando assim seu caráter natural e peculiar. Veja a cena em que Alice é flertada por um desconhecido em uma festa. Os dois conversam, e se pode ter, além dos sons ambientes (banda tocando, as conversas da multidão), as expressões deles assim como a cena toda: as velas por trás, a mesa, o andar dos outros convidados. Dificilmente se consegue captar todos esses elementos em apenas uma única cena, mas Kubrick consegue. Em muitas cenas, ele prefere o movimento ao corte, capta bem os movimentos das personagens (a mudança de foco no personagem que está sentado para aquele que está em pé; a câmera seguindo os passos do ator pelo corredor; etc.) e, como já dito, mantendo uma distância onde se pode captar todos os elementos da cena.
O cineasta também adora mostrar o lado mais animal do ser humano. Já se viu isso em 2001: Uma Odisséia no Espaço e também em Laranja Mecânica, só para citar duas de suas obras mais conhecidas. Na primeira cena de De Olhos Bem Fechados se vê Alice sentada no banheiro fazendo suas necessidades, e depois se limpando. Lembre-se disso: o ser humano nos filmes Kubrick é sempre mais animalesco do que nos outros. Outra grande característica é que ele não se preocupa em ocultar ou amenizar fatos ou cenas. Na mesma festa em que sua esposa é flertada por um desconhecido, Bill é obrigado a socorrer uma moça que acabara de se drogar. Antes de Bill entrar na sala, vemos a moça totalmente nua e Ziegler, o dono da festa, se vestindo, ainda seminu. Durante todo o atendimento, a paciente continua nua. Outros fatos são tão verossímeis que nos parecem levar a uma vida comum: Alice no banheiro, Alice se vestindo, Alice passando desodorante etc. Mais uma vez o ser humano como ele é.
Em se tratando de animalidade, pode-se perceber a áurea sexual e sensual que envolve as duas personagens principais. Ambos chegam à festa e, após beberem, acabam tendo conversas bem interessantes no que se trata da sensualidade. Alice dança com o desconhecido que diz que as mulheres só se casavam para poderem fazer sexo com os homens. Bill conversa com duas moças que querem levá-lo “ao fim do arco-íris” dando a entender claramente o que querem dele. Há de se lembrar que o segundo grande instinto do ser humano e de qualquer animal é a reprodução. No ser humano isso ganha um toque a mais: o sentido de prazer, além daquele da continuação da espécie. E essa aura é retratada em torno das personagens. Eis o homem animal em Kubrick. O filme tenta desconstruir todos os tabus sobre sexo. Bill é autoconfiante e se diz fiel. Alice, em uma conversa com Bill acaba por dizer, indiretamente, todas as vontades femininas. Não é só o homem que tem o desejo animal pelo sexo. A mulher também tem, e nem sempre procura a segurança e o conforto em quem confiam para aí terem uma relação sexual. O filme pode até ser usado como uma bandeira do feminismo, que visa desconstruir a tradição patriarcalista e falocêntrica de que o homem é o animal e a mulher é a indefesa, de que o homem é o que destrói e a mulher é a que se defende, de que o homem é o que faz sexo e a mulher é a que ama. Através da discussão entre o casal, Kubrick nos mostra que a mulher, também sendo animal, é como o homem: também sente desejos, tem taras e vontades, e o que separa os sexos é apenas o nome dado a eles pelo formato da genitália, e nada mais. Ambos são iguais.
Tudo gira em torno de relações amorosas e sexo: a filha de seu paciente que o beija na noite da morte de seu pai, o casal se beijando na rua, os “malucos” da gang que o chamam de gay e fazem inúmeras referências às genitálias, o empregado gay do hotel que fica tentando seduzir Bill, as brincadeiras sexuais de dois orientais com a filha do proprietário de uma loja de fantasias, dentro de seu próprio estabelecimento etc. Além da sensualidade, Kubrick explora bem a nudez. São incontáveis as cenas em que Alice aparece nua, sem contar nas pacientes atendidas por Bill em seu consultório; sem contar na bizarra reunião de pessoas que usam máscaras e transam em frente umas às outras em que Bill acaba por ir, por curiosidade, como bisbilhoteiro.
E seu toque de estranheza e, porque não, medo é dado na trilha sonora que acompanha o protagonista em meio ao perigo que enfrenta ao visitar a sociedade secreta. E essa estranheza é corroborada com as vestimentas dos freqüentadores desta seita secreta: máscaras. Cada uma com uma expressão diferente, mas todas, sem exceção, expressam medo.
Um filme fantástico, o último de um dos maiores gênios que o cinema já produziu. Kubrick novamente desafiou às leis (se é que elas existem) do cinema e das interpretações. Tom Cruise e Nicole Kidman estão ótimos no filme, conseguem mostrar um casal que mesmo se amando sofrem problemas. E Cruise, mostra esse ser humano amedrontado, mas movido pela curiosidade e por sexo. Porém, em um filme como esse, a estrela maior acaba por ser mesmo Kubrick, que faz um longa que mostra o lado animal e ao mesmo tempo sombrio do ser humano, que, apesar da fortuna, é mostrado como um animal, que tens desejos e instintos como todos os outros seres da natureza, e que é capaz de más atitudes quando seu íntimo, seus desejos, seus prazeres podem ser revelados a outrem. Vem também mostrar que o ser humano, apesar de amar e ser feliz com uma pessoa, também deseja sexualmente outras, desconstruindo assim a noção dos valores morais-religiosos de nossa época. Parabéns novamente para Kubrick, pena que já tenha nos deixado!
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