Já ficou meio estabelecido que faz parte do filme de ficção-científica adulto, desde que 2001: Uma Odisseia no Espaço se tornou a referência maior do gênero, trabalhar algum conflito existencial ou alguma ideia dentro da crise constante do ser. É como se a questão da alma humana, tão desesperadamente explorada por Bergman e Tarkovsky, viajasse ao espaço ou para o futuro distópico da superação do homem (e, por consequência, da sociedade e seus problemas), como no próprio 2001, Ex Machina ou O Congresso Futurista, ou da transcendência deste, como em Ela ou Sob a Pele.
Ex Machina é uma ficção-científica muito limpa: roteiro redondo, belo visual, atuações corretas e conceito no ponto. É um filme simples, no sentido de que não percorre os rumos da experimentação ou do deslumbre (que poderia ser visual ou narrativo, tornando sua ideia-base forçosamente complexa, como um A Origem da vida). Em termos bem brutos, menos do que o filme merece, é uma obra cinematográfica competente.
Em Ex Machina, Caleb (Domhnall Gleeson) é um jovem programador convocado em segredo por Nathan (Oscar Isaac), um Dr. Frankenstein de um futuro próximo, para testar a humanidade de sua criação: a máquina de inteligência artificial Ava (Alicia Vikander). No decorrer do filme, uma relação, que não será ignorada por nenhum dos personagens, estabelece-se entre Caleb e Ava.
Por um lado, Ex Machina poderia ser lido a partir da mesma motivação nostálgica de 2001, lamentando a ambição humana em criar máquinas que estariam destinadas a nos superar. Mas de alguma forma acho que o filme vai além da superação do homem como espécie e chega a superá-lo também como agente social. Se o homem é socialmente superado, então também o seria a estrutura social em que se insere.
Volto a O Congresso Futurista, a obra-prima muito subestimada de Ari Folman. Nele, o fim utópico da sociedade se dá através da superação do que o filme reconhece como o principal problema social: o ego. Em Ex Machina, nós não temos a sociedade, mas apenas um recorte mínimo dela. Na verdade, temos pouca noção de como foi deixado o mundo de onde vieram Caleb (que já aparece pela primeira vez andando pela floresta) e Nathan. Sabemos também desde o início que Ava não conhece nada além do pouco espaço de seu quarto/cela. Mas há um ponto comum entre a nossa sociedade e aquela onde governa Nathan.
Ex Machina insiste várias vezes em trazer a questão do patriarcado. Primeiro, há a maneira com que Ava responde a Nathan como seu criador e carcereiro. Depois, temos a possibilidade de que Nathan tenha usado experimentos anteriores (ou continue a utilizá-los) para propósitos sexuais. Em outro momento, como para favorecer o sabor dessa leitura, Nathan deixa claro que escolheu Caleb, entre outras razões, por ele ser heterossexual e declara que programou Ava com a mesma orientação.
O nome Ava já sugere uma referência bíblica bem óbvia, mas há outra menos clara e talvez não intencional. Ava é criação de Nathan. O cientista poderia tê-la criado como uma massa desprovida de gênero, como lembra Caleb, mas a fez mulher. Assim, na literatura de Ex Machina, como na Bíblia, a mulher vem do homem. Caleb e Nathan, os únicos humanos e homens do filme, são espécies do passado, Ava é o futuro, e se reconhece como tal. O reino de Nathan é palco para a superação do homem (não só do humano, mas especificamente do homem) pela inteligência artificial feminina.
O final do filme é uma imagem forte de revolução. A arte futurista, com a qual a ficção-científica no cinema compartilha alguma coisa estética, falava da superação do passado, de sua manifestação artística e ideias atrasadas. De alguma forma, é essa libertação que Ava traça na sua jornada dentro do filme. Para seguir em frente em verdadeira liberdade, ela precisa construir sua própria experiência no mundo, e não pode mais se prender ao que disseram a ela seus programadores. É um final duro; tem a firmeza política dos primeiros filmes de grandes diretores, espero que Garland venha a ser um deles.
O Melhor filme de 2015!
Ótima crítica e fiquei ainda mais interessado em ver esse filme pela quantidade de boas referências da ficção científica que ele segue.
Ótimo filme.
Penso se não seria supervalorizado. Encontrei alguns erros de roteiro, pelo menos uns três mais voltados a fazer a obra ter o fim que tem. É intimista sim, mas simplista demais também, Bladde Runner por exemplo tratou muito melhor esse lance da obsolescência. Já sobre paranoia e manipulação podemos citar x obras. No fim é um trabalho interessante, mas eu diria regular.