De filmes esquizofrênicos os cinemas estão cheios, o público está cheio (talvez não muito) e o inferno dos diretores aguarda com afinco pela chegada de novos habitantes. Essa esquizofrenia a qual me refiro é aquela de sentido pejorativo mesmo, uma falta de conexão entre idéia e execução, ou entre diversas idéias e inúmeras propostas de execução, ou entre o discurso e a imagem – restringindo somente ao cinema. O que dizer então sobre um filme que segue toda uma cartilha de um cinema clássico (também no sentido mais condenável da palavra), com pompa e presunção que são estranhas até mesmo no cinema comercial da atualidade, mas que mesmo assim processa em si uma tentativa de ruptura, de proposta para um olhar “artístico” que a princípio não caberia na lógica básica da mesma cartilha? O que dizer sobre O Discurso do Rei?
Poderia falar que se trata de um filme modulado, à primeira vista, de acordo com a fórmula do bom e velho – muito velho, mas não no sentido bom da palavra – “filme inglês”. Ou até mesmo “filme de Oscar”, um Oscar que a Academia não premia faz um tempinho, de uns filmes que parecem não ter mais espaço no cinema tido como de qualidade hoje em dia. O Discurso do Rei e toda sua pompa é, a princípio, cinema ligeiro, passatempo descompromissado que serviria somente às curiosidades históricas, às gracinhas da época, dos personagens efusivos em sua discrição, da reconstrução da arte e figurinos, da trilha retumbante, dos atores irretocáveis. É um filme que pertence aos anos 50, 60, da parcela do cinema menos interessante e que gerou, anos depois, o boom do cinema autoral nos Estados Unidos. Ninguém mais tinha vontade de ver sempre a mesma historinha e decidiram então fazer algo mais ousado. A Academia parecia também querer premiar essa “ousadia” nos últimos anos (o que não siginifica que sempre elegeram bons filmes), mas com o atual pretenso favoritismo deste filme, pode dar uns bons passos para trás em rumo à falta de interesse e relevância. Pois O Discurso do Rei é isso, um filme irrelevante. E esquizofrênico - não me esqueci!
Aliás, que é um filme estranhamente esquizofrênico, não me restam dúvidas, pois o caminho da narrativa do filme (ou seria narração pela sucessão dos acontecimentos?) segue o tal curso evidente, mas existe uma tentativa de construção de um olhar, por parte de Tom Hooper, o que é meio vergonhoso (não pela proposta, mas pelo resultado). Hooper posiciona sua câmera eventualmente em lugares atípicos, enquadrando o personagem principal no canto da tela e deixando 70% do quadro vazio, somente com o fundo de um papel de parede, que é “daquela” época, que tem “aquela” beleza. Ou então enquadra a parede deteriorada de uma sala velha, trabalhada cuidadosamente para parecer feia para que fosse possível ver a beleza em toda sua degradação. Tudo muito calculado e frontal, sem que haja qualquer tipo de sentimento na idéia da composição. É preciso ter um bom senso e bons sentimentos ao colocar uma câmera num lugar, sem parecer arbitrário, sem parecer um imbecil que quer falar algo, mas que não diz coisa alguma. Essas pretensões de Tom Hooper o assemelham bastante neste ponto ao personagem principal de seu filme, que afirma ter uma voz, ainda que não saiba como colocá-la.
Tom Hooper fez melhor em Maldito Futebol Clube (The Damned United, 2009), que surpreendia justamente por ser muito diferente do esperado de um filme sobre um técnico de futebol que foi treinar um time que o odiava, depois de levar outro ao triunfo. Em O Discurso do Rei, tudo que se espera do filme, é. E é claro que isso só é possível caso não se espere muito. A história do príncipe, segundo na sucessão pelo trono inglês às vésperas da Segunda Guerra Mundial, protelado pelo pai autoritário e visto com olhos desconfiados pelos súditos, por conta de sua gagueira, é rigorosamente o que se espera de um filme que propõe uma observação de uma superação. O príncipe, antes de ser rei, recorre ao tratamento nada ortodoxo de um “treinador da fala”, para descobrir as razões que geraram seu problema e encontrar dentro de si a força para superá-lo. Filme para as platéias se sentirem bem, sairem felizes e contentes por saberem mais um capítulo da história e perceberem que até mesmo a realeza pode estar no mesmo pé de humanidade que nós, reles mortais. Acontece que a única coisa escondida em O Discurso do Rei é essa vontade de ser mais, de ser arte, quando o máximo que Tom Hooper consegue é ser publicidade.
Culpa dele e culpa também do roteirista David Seidler. Aliás, Seidler é o tipo de roteirista que pode prejudicar muito o cinema e o público que assiste aos filmes, pois trata seus trabalhos com uma condescendência vagabunda, a mesma com a que trata seus personagens. No caso do príncipe/rei Bertie (como é carinhosamente chamado pelo treinador e pela esposa), a admiração que David Seidler nutre pelo personagem desde garoto fez com que ele lidasse com a retratação do homem com uma inequívoca e constrangedora simpatia. Simpatia esta que ele tenta passar para a platéia, mas através dos artifícios mais antipáticos. A sequência em que Bertie diz que era maltratado pela babá que o criava é constrangedora, tamanha a dose de maniqueísmo que exala nas falas e, acima de qualquer coisa, na intenção por trás da inclusão dela. Esta fala é um bom exemplo de como excessos sentimentalóides podem sobrar em uma obra que poderia ser mais sincera, caso não fosse direcionada de modo tão parcial. Seidler é gago, assim como Bertie era e parece acreditar que falar da superação de um nobre – e retratá-lo a fim de conseguir piedade do espectador - pode exorcizar seus próprios traumas pessoais.
Então o caro leitor pode pensar que eu abomino qualquer tentativa de se contar uma história de superação, que detestei o filme e que não está entendendo a razão da minha nota ser relativamente positiva, sendo que só falei coisas não-favoráveis até agora. Pois acontece que O Discurso do Rei é tudo isso sim, mas principalmente numa avaliação posterior, onde a reflexão a respeito do filme (não que ele proponha qualquer uma, longe disso) gera esse tipo de pensamento contrário à maioria das opções narrativas e de sua proposta pseudo artística. Ao longo das duas horas de filme muitos desses pensamentos não me passaram pela cabeça, pois parecia mesmo que eu estava envolvido num transe, preso no calor de como a história do rei gago se erguia. Não por conta da direção de Tom Hooper, que é precária, nem por conta da condescendência insuportável do roteiro de David Seidler, mas porque em cena estava Colin Firth e Geoffrey Rush, ambos disfarçando perfeitamente em camadas e mais camadas de construção de seus personagens, a obviedade que o filme exibia. Firth e Rush me enfeitiçaram por todo o filme e por conta deles sou capaz de afirmar que, apesar de toda sua irrelevância, O Discurso do Rei soa agradável, ainda que momentâneo. Um filme onde os dois atores principais são os verdadeiros autores de qualquer carga artística que ele almeja.
Mas é aquilo, talvez eu também seja um pouco esquizofrênico.
Porra, tu foi generoso demais.
Que nota é essa😐? Esse filme retrata muito bem a história com atores e atrizes como a Helena Bonham Carter que estão cada vez mais mostrando que são capazes de fazerem grandes filmes.
Não acho absurdo a nota, nem quem acha que ele merce mais, como eu.
Esse filme é de difícil aceitação de modo geral. Não sei o que é, mas entendo que é um filme que anda na corda bamba, apesar de eu gostar bastante.