Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O anti-romance.

8,5

A primeira seqüência de Muriel ou o Tempo de um Retorno é uma colagem de retalhos. Um quadro visto aos pedaços, um vulto, como a fotografia de uma época cujo filme não tenha ficado tempo suficiente exposto à luz. Ainda assim, restou algo. Uma silhueta, um contorno, uma sombra. E os personagens passam pelas conseqüências deste processo, em conflito seja nos limites de um apartamento ou da cidadezinha onde se conhece a todos em poucos dias.

Tudo é fugidio, efêmero, incompleto. A impressão é de que os cortes foram todos errados. Todos os diálogos são interrompidos, todas as cenas são partidas pela metade. Nada tem um fim, uma conclusão, nada é uma história que vale a pena ser contada, nada é uma lembrança que valha guardar. Muriel é todo a falta de um todo. Não há nem o menor resquício dos longos e contemplativos planos de Ano Passado em Marienbad, a reflexão dolorosa de Hiroshima, Meu Amor, aquela narração que ornamenta as imagens. Muriel é pontiagudo, é uma obra sem acabamento, como os passados de Hélène, Bernard e Alphonse.

A única pessoa feliz em Muriel é Françoise. É recorrente que ela pare e olhe todas as vitrines no caminho enquanto o resto dos personagens simplesmente passe andando. Françoise não tem passado, quase nem tem presente. Sua euforia ao falar de um navio no porto da cidade é algo que ninguém mais naquele apartamento poderia compreender.

Bernard, por sua vez, sequer chega a existir em algum momento no filme. Ele morreu e permaneceu na Argélia, vivendo nos porões da memória, com os olhos voltados sobre Muriel. Como na cena do jantar, com os óculos com os olhos falsos no presente e os verdadeiros enterrados em algum lugar do passado, como quem oculta um corpo.

O romance entre Hélène e Alphonse é um coito interrompido num plano mais amplo, espalhado sobre o passar de vários anos. Não foi, poderia ter sido, e já não será nunca mais. Pena. E há toda uma recorrência da história dos dois reduzida em uma ou outra cena, um pequeno diálogo, como se de um grande sentimento fosse apenas um gesto ou outro tudo o que restara. Como quando Alphonse tenta tocá-la, ela percebe, e lhe dá um pudim para lhe ocupar as mãos. Pura crueldade. E também na conversa dos dois, na mesma noite, quando ele diz “eu quero beijá-la”, e ela, como quem recusa um pedaço de torta, “amanhã”. É lindo, é triste, mas ao mesmo tempo é muito rápido. Tudo, tudo em Muriel é rápido demais, é sem uma devida importância.

O que resta de Muriel é uma grande amnésia. Os personagens vão aos poucos se esquecendo de si mesmos, se perdendo uns dos outros, partindo em direções diferentes, minando com o reencontro tardio o que havia restado de bom de uma história até que não restasse mais nada. É o anti-romance, o ritmo subvertido junto da esperança, da alegria mesmo que fugaz, da doce saudade. Como se de nada mais servisse o amor se não para deixar vazios ao invés de preencher espaços.

Se alguns sempre terão Paris, Tóquio, Viena... mesmo alguns instantes num amanhecer nevado de uma ruazinha de Veneza, outros até mesmo da dor serão privados. Outros terão coisa nenhuma.

Comentários (0)

Faça login para comentar.