Um adolescente que nunca envelheceu.
Poucos cineastas ao longo da história do cinema entenderam tão bem os jovens de sua época quanto John Hughes. Autor não apenas de filmes emblemáticos durante os anos 80, como também de roteiros inesquecíveis para outros realizadores, o diretor quase sempre abordou o cotidiano do que é ser adolescente, seus dramas e medos como ninguém. Hughes conseguiu a proeza de ser respeitado tanto pelo público quanto pela crítica, fato que poucos cineastas que se arriscaram pelo tema conseguiram alcançar. E é fácil entender o porquê. Um adolescente que nunca envelheceu, nostálgico por natureza, Hughes colocava em seus filmes aquilo que lembrava de quando tinha a idade de seus personagens, seus desejos reprimidos, suas vontades, seus medos e pensamentos depressivos em uma época teoricamente feliz, lotada de atitude, maquiagem e cabelos penteados de forma despenteada.
Natural de Lansing, Michigan, nos Estados Unidos, nasceu no dia 18 de Fevereiro de 1950. Cresceu e viu sua família se mudar em 1962 para Northbrook, Illinois, por causa do serviço do pai, que vendia materiais para telhados. Graduou-se na ‘Glenbrook North High School’, que viria a ser palco de quase todos os seus filmes, sob o nome alternativo de Shermer (que representa o nome antigo do local onde viveu, Shermerville). Foi neste colégio que conheceu sua mulher, Nancy Ludwig, com quem casou em 1970, teve dois filhos e viveu até sua morte, em 2009. Vendeu piadas para comediantes já bem estabilizados, como Rodney Dangerfield e Joan Rivers, logo após ter deixado a ‘Arizona State University’.
Entrada da ‘Glenbrook North High School’,
onde Hughes estudou e filmou vários de seus filmes
Começou a carreira como escritor na revista ‘National Lampoon’, com uma história baseada em uma viagem de família feita quando criança, o que lhe serviu como cartão de visitas para seu primeiro emprego na área. Esta história serviria como base para um de seus futuros trabalhos, Vacation (idem, 1983), dirigido por Harold Ramis. Seu projeto inicial com o cinema propriamente dito surgiu pouco antes, enquanto ainda trabalhava na redação, com o roteiro de A Reunião dos Alunos Loucos (Class Reunion, 1982), que conta a história de um grupo de amigos que se reúne dez anos depois de sua formatura. Só que um deles é um louco fugitivo do hospício, o que obviamente gerará uma série de confusões.
Durante as filmagens de Gatinhas & Gatões.
Seu primeiro trabalho na cadeira de direção é também um de seus mais conhecidos. Marcando o início de sua parceria com a atriz Molly Ringwald, com quem fizera três filmes (dois na direção e um como roteirista), Gatinhas & Gatões (Sixteen Candles, 1984) conta a história de uma adolescente (Molly) que deve conviver com o esquecimento, por parte da família, de seu aniversário de dezesseis anos, ao mesmo tempo em que um garoto nerd da escola começa a azará-la. Discutindo os dramas adolescentes, como aniversários, paixonites e até sexo, o diretor criou algumas passagens inesquecíveis, como a conversa entre os jovens dentro de um carro numa garagem, gerando uma de suas mais célebres frases: “você poderia me emprestar sua calcinha por dez minutos?”. Essa frase representa muito mais do que parece a primeira vista: a mania adolescente de querer aparecer mais para os amigos do que ser confiante em si mesmo.
Diretor junto ao elenco principal de Clube dos Cinco
No ano seguinte, Hughes lançou duas obras completamente diferentes. Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985) trata de um grupo de cinco jovens de diversos perfis que ficam de castigo um dia inteiro no colégio, por diferentes motivos, sendo obrigados a escrever uma redação sobre o que fizeram. Só que o castigo, na verdade, funciona como um período de confissão e reflexão, uma jornada emotiva e profunda sobre a filosofia de vida destes jovens tão complicados de se entenderem, com suas inseguranças e pensamentos particulares. A sequência onde todos sentam em um círculo e começam a contar histórias de suas vidas não estava no roteiro; Hughes pediu que todos improvisassem, o que acabou funcionando e se tornando o grande clímax da produção.
Imagem do filme Mulher Nota 1000
Já Mulher Nota 1000 (Weird Science, 1985) tomou rumos inversos. Ainda que flerte com os adolescentes e suas ideias malucas, o principal foco é mesmo a viagem perfeita que todo moleque no início da puberdade gostaria de ter: uma mulher mais velha, que faz tudo o que ele quer, fisicamente perfeita e de causar inveja aos marmanjos, criada por computador (flerte com a tecnologia da época) e sem nunca torrar a paciência com inconvenientes como ciúme ou atenção. O drama é deixado de lado para dar lugar à comédia, ao mesmo tempo em que os dois jovens, Gary (Anthony Michael Hall) e Wyatt (Ilan Mitchell-Smith), descobrem o verdadeiro sentido de gostar de alguém. Mais uma vez, algumas cenas emblemáticas são criadas, como a invasão na festa e a sucção da chaminé. Destaque para a pequena participação de Robert Downey Jr. como Ian, um dos adolescentes mais crescidos que enche o saco da dupla de protagonistas.
Estes três filmes já demonstravam as influências de Hughes: sua adolescência, a escola e, principalmente, a nostalgia. Todas as suas fitas são regadas, principalmente, de saudade. Cenas em colégios, como bibliotecas ou lanchonetes, tornaram-se uma de suas principais características, tempos que sente saudade e que gostaria de não ter passado. Mais ou menos o que sentimos quando crescemos, ganhamos novas responsabilidades e não sobra tempo para mais nada. É essa a essência de ser adolescente, descobrir o mundo e a si mesmo. Tempos depois, por trabalhar com o mesmo grupo de atores em diversas produções, acabou sendo considerado o pai do ‘Brat Pack’, que é justamente o apelido dado a esse grupinho de jovens dos anos 80 que sempre dividiam produções, algo mais ou menos como o que Brad Pitt, George Clooney e Matt Damon fazem hoje. Algumas imagens teoricamente aleatórias, como máquinas de refrigerantes, corredores vazios, aparelhos de som, sofás, etc, acabaram por fotografar a época e torná-la imortal, batendo uma saudade exacerbada naqueles que viveram em locais parecidos.
John Hughes conversando com Matthew Broderick,
astro de Curtindo a Vida Adoidado
Já tendo explodido para a mídia e para o público com seu talento reconhecido, John Hughes viria a fazer sua obra máxima no ano seguinte; aquela por qual toda sua carreira seria lembrada. Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986) conta a história politicamente incorreta de um jovem (Broderick, perfeito) que decide faltar aula e aproveitar o lindo dia de sol forte e céu limpo. Porém, sua irmã e um diretor enfurecido farão de tudo para estragar o belo passeio, que inclui as antológicas cenas da delegacia (participação de Charlie Sheen em um de seus primeiros papeis no cinema), do passeio de Ferrari e, claro, do desfile em carro alegórico ao som de ‘Twist & Shout’, clássico dos Beatles (de quem o diretor é fã e, sempre que podia, inseria uma de suas canções nas trilhas de seus filmes). Aqui a ideia de ser jovem, livre e fazer o que quer é elevada à máxima potência, e mesmo toda a história sendo politicamente incorreta, jamais torcemos contra Ferris por dois motivos: o carisma de Broderick e a nostalgia de todos que já mataram aula algum dia, pois há um pedacinho de Ferris Bueller dentro de cada um de nós (Hughes ainda dá um empurrãozinho retratando as aulas como chatas, sonolentas e beirando o insuportável, o que nos faz não só compreender a atitude de Ferris, como apoiá-la).
Steve Martin e John Candy em Antes Só Do Que Mal Acompanhado
Em 1987, Hughes deixou os adolescentes um pouco de lado, com medo de ser tornar um estereótipo, para trabalhar com Steve Martin e John Candy no quase road-movie Antes Só Do Que Mal Acompanhado (Planes, Trains & Automobiles, 1987), que conta a história de um publicitário (Steve) que corre contra o tempo para tentar passar o Dia de Ação de Graças com sua família. Só que um monte de contratempos atrapalham sua viagem, além da nem sempre agradável companhia de um vendedor chato (Candy). Um dos filmes preferidos de Steve Martin, adorado pelo consagrado crítico Roger Ebert e a prova de que Hughes não era sensível apenas com os jovens, mas com os sentimentos que rondam o ser-humano de maneira geral. Curiosidade: em uma das cenas, passam imagens do ainda inédito Ela Vai Ter Um Bebê (She’s Having a Baby, 1988), que seria o próximo filme de Hughes, com Kevin Bacon e Elizabeth McGovern como o principal casal da comédia romântica (Bacon havia feito uma participação como um taxista em Antes Só Do Que Mal Acompanhado, o que o direcionou à este papel), que não chegou a fazer o sucesso esperado.
Voltando a trabalhar com jovens, só que desta vez crianças, Quem Vê Cara Não Vê Coração (Uncle Buck, 1989) fala sobre um atrapalhado tio que passa maus bocados ao cuidar dos sobrinhos endiabrados, mesmo contra a vontade da família. Não tão marcante quanto seus primeiros trabalhos, este filme é hoje muito mais conhecido por ter apresentado o astro mirim Macaulay Culkin ao cinema (que viria a estrelar o maior sucesso comercial da carreira de Hughes, Esqueceram de Mim [Home Alone, 1990]) do que por méritos próprios. Seu último longa de uma curta carreira como diretor (apenas oito filmes) foi A Malandrinha (Curly Sue, 1991), filme chatinho sobre uma menina órfã que aplica inocentes golpes junto do homem que cuida dela, que acaba tirando a sorte grande e passa da sarjeta ao luxo de uma hora para a outra. Discutindo os valores da vida, dialogando principalmente com as crianças (novamente elas), percebe-se que Hughes nunca conseguiu alcançar com elas o mesmo êxito que teve ao tocar os corações dos adolescentes.
A Garota de Rosa-Shocking e Esqueceram de Mim,
dois dos principais sucessos de Hughes como produtor e roteirista
Atuando também na área de produção e roteiro, escreveu quase quarenta longas, muitos que se tornaram famosos, principalmente depois que largou a cadeira de direção: A Garota de Rosa-Shocking (Pretty in Pink, 1986), Construindo Uma Carreira (Career Opportunities, 1991), Beethoven, O Magnífico (Beethoven, 1992) Dênis, O Pimentinha (Dennis the Menace, 1993), Ninguém Segura Este Bebê (Baby’s Day Out, 1994), 101 Dálmatas – O Filme (101 Dalmatians, 1996) e outros. Ficou furioso com Molly Ringwald, após esta recusar o papel de Amanda Jones em Alguém Muito Especial (Some Kind of Wonderful, 1987), que ficou a cargo de Lea Thompson, o que encerrou a parceria de sucesso entre os dois. Seu último trabalho foi a história de Meu Nome é Taylor, Drillbit Taylor (Drillbit Taylor, 2008), sob o pseudônimo de Edmond Dantes, roteirizado também por Kristofor Brown e Seth Rogen, estrelado por Owen Wilson, mas que também não fez muito sucesso.
Sua vitoriosa carreira chegou ao fim pela manhã do dia 6 de Agosto de 2009, durante uma caminhada, em Nova York, quando sofreu um infarto fulminante, aos 59 anos. O diretor estava de férias e foi encontrado na rua West 55th Street, já inconsciente, pelos paramédicos que o socorreram. John Hughes deixou dois filhos, quatro netos e esposa, com quem foi casado por 39 anos. Na cerimônia do Oscar de 2010, uma retrospectiva de sua carreira emocionou a todos os presentes, confirmando sua importância na história da sétima arte.