Existem filmes que nascem sob o estigma do fracasso. Alguns correspondem, outros não. "M.A.S.H." por exemplo, tinha tudo para dar errado. Baseado num romance que ninguém leu, dirigido por um diretor até então inexpressivo e com um orçamento de fazer corar o mais independente dos realizadores, este longa-metragem atípico abriu a década de 70 fundindo a cuca da crítica e do público. Virou clássico. Mais do que isso: alavancou a carreira de Donald Sutherland, virou seriado de tevê, cujos 250 episódios permaneceram no ar por dez anos acumulando um caminhão de prêmios. Com um dos melhores roteiros da história do cinema, M.A.S.H. é filme imprescindível para qualquer cinéfilo ou amante da 7ª arte...
Na história, Altman enfatiza o absurdo da guerra através da aparente displicência dos médicos para com o trabalho. Entre cirurgias complicadíssimas, eles lutam para arrumar azeitonas para beber martíni e jogam golfe; tentam transar com todas as mulheres que aparecem pela frente e planejam ganhar uma grana preta numa aposta com o general/comandante. Enfim, estão pouco se lixando para os feridos, querem mais é se divertir e fazer o tempo passar mais rápido. O horror cotidiano da guerra é tão comum que não espanta mais.
A parte técnica do filme, apesar do baixíssimo orçamento é bastante satisfatória. Pelo fato de Altman utilizar lentes especiais, acaba por deixar o filme com fotografia quase amadora. E Altman sofreu bastante. Abordar a guerra do Vietnã no inicio dos anos 70 era como falar do 11 de setembro hoje em dia, ou seja um assunto totalmente escabroso e delicado ainda mais em uma produção de grande estúdio (no caso, a 20th Century Fox) era uma tarefa hercúlea. Mas Altman era tão gênio que burlou a vigilância da Fox e manteve o tom satírico do enredo durante toda a película. Alias, Altman se dedicou cutucar as feridas da sociedade norte-americana e fazer a ela uma crítica implacável, sempre armado com um senso de humor corrosivo e vastas galerias de tipos humanos impagáveis. Impagáveis como há um major que encobre taras sexuais rezando o dia inteiro (Robert Duvall), um dentista gay com o maior membro sexual do Exército americano (John Schuck), uma loira sensual e autoritária, a major 'Lábios Ardentes' Houlihan; Sally Kellerman que recebeu até uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante.
Até cair nas mãos de Robert Altman, o roteiro de "M.A.S.H." foi recusado por uma dúzia de diretores que sentiram cheiro de roubada. "M.A.S.H." foi a oportunidade para Altman exibir sua incomparável habilidade em lidar com inúmeros personagens, conduzir tramas episódicas, refinar o humor pastelão e acima de tudo fazer de um microcosmo uma referência universal. Quem viu "Assassinato em Gosford Park" sabe bem do que estou falando.
Alem da indicação a Melhor Atriz Coadjuvante para Sally Kellerman, o longa recebeu indicações nas categorias de Melhor Edição/Montagem, Melhor Diretor para Altman e Melhor Filme. Acabou vencendo somente na categoria de Melhor Roteiro Adaptado, genialidade pura de Ring Lardner Jr. adaptando romance de Rochard Hooker baseado em relatos do próprio Hooker famoso cirurgião, que viveu situação semelhante na Coréia.
Apesar do filme ser situado em plena Guerra da Coréia, o único tiro ouvido no filme é o utilizado para interromper uma partida de futebol. Isso é mais uma prova da acides de Robert Altman. A vitalidade de M.A.S.H. (abreviatura de Mobile Army Surgical Hospital) reflete o espírito de um tempo em que hippies queimavam cartas de convocação em praça pública, a contracultura revirava os ícones da América e a marginalidade assumia condição heroica. A história dos cirurgiões que servem num posto militar na Coréia é pretexto para uma crítica aguda ao poder, à hierarquia dos campos de guerra e às convenções religiosas e sexuais. O choque de informações se estabelece desde o início, quando soldados feridos são mostrados ao som da melosa canção “Suicide is painless” (“suicido é indolor”) e prossegue no humor negro de Donald Sutherland e Elliott Gould nas ensangüentadas mesas de operação. É bom saber que Altman, um libertário por excelência, continua sendo a referência de nove entre dez diretores independentes e que M.A.S.H. continua sendo uma resposta humorada ao horror da guerra. Aliás, de todas as guerras...
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