Depois de um longo período de férias – 9 meses é demais até para um escriba sazonal como eu –, volto com a ideia do Batuque, após assistir a um daqueles filmes capazes de fazer qualquer sujeito se lembrar das grandes coisas que o Cinema pode produzir. Me refiro ao longa-metragem nacional Narradores de Javé, da cineasta Eliane Caffé.
Muito bem, a narrativa tem início em um modesto bar, aparentemente situado em algum ponto longínquo do nordeste brasileiro. Quatro sujeitos jogam conversa fora em uma mesa, dentre os quais o dono do estabelecimento (interpretado por Matheus Nachtergaele, em uma pequena aparição), um forasteiro e um ancião que atende pelo nome de Zaqueu (Nelson Xavier). Em meio ao congraçamento, Zaqueu é convidado pelos companheiros a narrar a história de sua terra natal.
A partir de então, somos levados ao remoto vilarejo de Javé. A população local anda amedrontada com a possibilidade de ser expulsa de sua terra, em virtude da construção de uma represa que promete transformar as cercanias em puro “mar”. Diante do triste quadro, surge a ideia que parece ser a única alternativa capaz de salvar a cidade: organizar, através de depoimentos orais dos moradores, toda a história da região em um livro, com o intuito de alçar a modesta cidadezinha de Javé à condição de patrimônio histórico e cultural do Brasil, evitando enfim a sua destruição. No entanto, sendo uma região marcada pela pobreza e analfabetismo, os humildes sertanejos terão que recorrer ao infame escrivão Antônio Biá (José Dumont), o qual, no passado, ludibriou toda a cidade para conseguir vantagens pessoais. Dono de uma fértil imaginação e uma lábia capaz de grandes prodígios, Biá aceita a missão que trará sua redenção diante daquelas pessoas, iniciando sua jornada em busca dos fatos que acarretaram na criação de Javé.
Adotando uma estrutura similar a de Rashomon – a genial obra de Kurosawa, na qual os personagens narram diferentes versões acerca do mesmo acontecimento –, Narradores de Javé passeia por aquilo que é chamado de memória coletiva. Assim como ocorre com os personagens do filme japonês, os sertanejos de Javé também contam de maneira diversa a gênese da cidade, sempre procurando enaltecer o papel de seus antepassados, atribuindo-lhes os status de heróis, desbravadores, líderes etc. Interessante notar, porém, que apesar do imaginário local ser um tanto diverso, há um elo de ligação que conecta a maior parte dos testemunhos: o anseio daquela população em sublimar sua condição miserável com uma narrativa repleta de gloriosos feitos históricos. O desejo, enfim, de desenhar o nascimento de Javé com pinceladas dignas de uma epopéia.
Em que pese a semelhança estrutural, Narradores de Javé se afasta da obra japonesa, ao apostar em uma abordagem bem humorada diante da multiplicidade de estórias. Explico. Sempre que os personagens entram em conflito uns com os outros, para defender a veracidade de suas versões, o humor se incorpora às cenas. Nesse sentido, difícil não se deliciar com os verdadeiros esporros dados pelo escriba Antônio Biá nos brigões. Preocupado não apenas em frear os ânimos, Biá se diverte esculhambando cada uma daquelas pessoas, fazendo uso dos mais fascinantes ditados e expressões populares do nordeste para atingir esse objetivo.
Soma-se a esses elementos, um elenco muito competente, que mistura atores consagrados (tais como José Dumont, Rui Resende, Gero Camilo e Nelson Xavier) com outros desconhecidos (apesar de não ter apurado a informação, me arriscaria a dizer que amadores) os quais transmitem com crueza e sensibilidade o sofrimento de um povo que terá que abandonar sua vida em observância aos ideais de progresso do Estado. Aliás, em se tratando de elenco, não há como deixar de destacar a impressionante interpretação de José Dumont como Biá. Não à toa, o Festival do Rio o reconheceu com o prêmio de melhor ator em 2003. O certo é que palavras são vãs para descrever o que ele faz em cena. Minha única e óbvia recomendação é assistir ao filme e apreciar o talento de um dos maiores artistas do nosso cinema.
Por fim, é inegável que Narradores de Javé ganha peso e relevância na atualidade, quando desapropriações e remoções de famílias tornaram-se recursos eficientes para se viabilizar a modernização, desenvolvimento econômico, eventos esportivos e o escambau . Afinal de contas, as regalias e progressos da nação sempre pesam nos ombros dos desvalidos. Tenho para mim que sempre que uma comunidade ou cidade como Javé desaparece, uma parte inestimável do Brasil morre junto (e eu não sou doido de mensurar a importância de uma região pelo tamanho do território ou pela densidade populacional). A fictícia Javé foi um infeliz local, onde sertanejos, homens-fortes na definição de Euclides da Cunha, criaram e recriaram sua cultura, dançaram e cantaram suas festas, praticaram ritos, honraram seus ancestrais etc. Fictícia cidade de Javé.
Uma pena que ficção e realidade insistam em se confundir em casos como esse.
Excelente texto.