O panorama de uma sociedade rendidaA sensação primeira que o espectador tem ao sair de uma sessão de O Som ao Redor (idem, 2012) deve ser, suponho, a de saber que, sem dúvidas, não “digeriu” totalmente o que suas visão e – principalmente – audição acabaram de captar. Repleto de abstrações, significados, reflexões e estudos pertinentes, a obra que Kleber Mendonça Filho traz às telas, em circuito adequadamente limitado, é um retrato fidedigno (e nada menos que admirável e assombroso) da classe média do século XXI que vive – e parece insistir em viver – aprisionada em si mesma.
O som, sempre emitido de forma a nunca ser completamente apurado, é o elemento-chave do filme – como sugere o título –, compondo o principal meio de conexão entre as personagens e o espectador. É ele o que torna ainda mais perturbador o tom de terror sutil, constante na trama da crônica. Mais que isso: ele se prova fator necessariamente essencial, nas mãos de Kleber, para que o diretor cumpra seus objetivos mais claros – um deles, o de ser fiel ao infinito de particularidades que certamente existe ao nosso redor, e que, por vezes, ignoramos de forma involuntária. A cena final consegue ser bastante didática como prova dessa intenção – o modo como o som da bala disparada se confunde com a explosão de bombas juninas pode ressaltar, dentre outras coisas, como expectativas frustradas e aceitação da violência se firmaram como características ordinárias da sociedade moderna.
Mendonça inicia seu relato mostrando a premissa de uma sociedade fundada em modelos arcaicos e, consequentemente, na mediocridade, fato que delineia bem uma das faces de seu projeto. Assiste-se a uma série de fotografias de rostos desconhecidos e paisagens descampadas – uma espécie de reino da omissão, do medo e do anonimato, construído e apurado pelo poder patriarcal e sua indevida importância, em um velho (velho?) Brasil. O Som ao Redor é, antes de qualquer outra coisa, um documento: o panorama de um país que, apesar de ter modificado seus padrões, persiste em viver sob mazelas socioculturais severas. O peso da história se revela não apenas através da apresentação do mundo urbano como tendo se tornado sinônimo de prisão, mas também por meio de elementos de cunho factual, como a existência de uma hierarquia racial insistente e de um coronelismo em decadência que, ainda assim, consegue oprimir.
Ademais, tão importante quanto a poderosa fotografia da sociedade-cárcere, o filme é um autêntico estudo de indivíduos. O que nos é, também, apresentado é um largo plano de pessoas que vivem rendidas e detidas pelos seus cotidianos, sejam eles exageradamente ordinários ou, aos olhos de alguns, muito excêntricos. É essa a infinidade de sons ao redor. Existe, nessa prisão, um universo de tormentos e paranoias peculiares, que cada pessoa isolada carrega consigo e persiste em viver, encurralada em seu lar – seja isso consequência de um passado histórico perturbado ou do monstro que a classe-média insiste alimentar. É a figura de gente que teme demais, de um real Brasil fictício, de um mundo vazio, tedioso e feito de expectativas inibidas, capturado por vezes de forma claustrofóbica.
É surpreendente como a visão de Kleber funda (ou retoma) uma arte diferente, ousada e sem receios. O Som ao Redor rompe com formas muito criteriosas ou puramente gananciosas de se fazer cinema e, sendo a obra rara que é, consegue quebrar quaisquer relações com cinema de gênero e tem um sucesso absurdo ao mostrar a influência inevitável do passado, tanto na formação do mundo urbano enfermo em que vivemos quanto na individualidade de cada pessoa que vive nessa esfera aterradora. É através do som, como elemento protagonista da crônica, que é aberta a projeção da tensão interminável de cada caos íntimo apresentado, e é através de sua ausência abrupta que somos obrigados a digerir as duas horas de um horror quase invisível.
Esteticamente impecável, brilhantemente conduzido e, acima de tudo, fielmente aplicável ao que nos ronda, O Som ao Redor é um dos filmes mais poderosos e eficazes de uma longa história de 7ª Arte no Brasil. É cinema que transmite e possibilita reflexões, que mexe e brinca com os sentidos, mostrando que falar de uns poucos pode significar facilmente falar de muitos e do que existe ao seu redor – no caso, os tais sons. Sons estes que pouco parecem significar, sons despercebidos e ignotos, mas que têm muito a dizer.
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