Euclides da Cunha escrevera: “O sertanejo, é antes de tudo, um forte”. Esquecera de acrescentar: primeiro porque resiste e segundo, porque afronta. Não por acaso, na primeira cena, Mendonça já demonstra ser um herdeiro latino-americano de Kubrick: do espaço sideral pastiche, parte para a Terra, em seu 2001 nordestino, iremos aprender que ao sapiens, lhe parece faltar a “sapiência”.
Bacurau não é um filme comum, se o fosse, não teria despertado a ira deste atual governo. Busca o que há de mais radical no cinema internacional: de Sergio Leone a Tarantino, de Kubrick ao cinema boliviano de Jorge Sanjinés. Também evidencia, pelos lançamentos brasileiros em 2019, um país que parece querer encontrar a sua revolução. Não como ataque, mas por resistência - uma pena, mas que seja. Mais do que isso, Mendonça propõem um ode ao terror revolucionário (jacobino, bolchevique, guerrilhas, Lampião e Maria Bonita..), e por isso, não vê no sangue do inimigo uma barbárie, mas a libertação dos oprimidos. Exatamente por isso, como Leone, não esconde os pedaços humanos expostos ao solo seco do sol.
A sua violência não é só física, mas simbólica (e no melhor nível cinematográfico). Reparem nos inúmeros caixões durante a sessão. Na primeira cena, um caminhão de água potável atropela dois caixões violentamente, acordando Teresa (Bárbara Colen), mas também demonstrando ao espectador, que acorda de um longo silêncio, que estamos adentrando às portas do inferno. Abre-se um mundo violento diante da tela, trágico e poeirento. Afinal, nada mais brasileiro do que um cadáver atirado num acidente banal numa autoestrada esburacada.
Do espaço sideral falso, ao estilo dos grandes filmes de invasão alienígena, como A Bolha Assassina (The Blob, 1958) ou A Ameaça Veio Do Espaço (It Came From Outer Space, 1953), começamos com uma negação, uma falsidade. Diferentemente dos filmes antigos, principalmente aos insanos da Guerra Fria, o perigo não vem de fora, não vem de longe, de cima, ele é e está aqui. A compreensão é de Platão e Sócrates: para se chegar ao verdadeiro, é preciso se afirmar o falso. O que é, só pode ser o que não é demonstrado que não é.
Diversos críticos de cinema, alguns pretensamente sérios, inclusive, viram no filme um ode aos votos dados aos petistas em 2018. Ora, nada é mais propositalmente ridículo do que isso, reduzindo a própria obra em si a uma votação forçada ao Estado burguês – que aparece em crise na distante Bacurau. O Museu Histórico da cidade, a partir daí, representa bem o que quero dizer: em primeiro lugar, os visitantes estrangeiros se negam, a pedido de uma habitante, a visitá-lo – obviamente. Irão conhecê-lo da pior forma, quase como uma negação da negação entre usurpação e relativização da história daquela região e da força de união de seus habitantes. Alguns destes estrangeiros, aliás, são nada menos do que brasileiros, que não conseguem entender o porquê de acabarem como alvos de bullyng de estado-unidenses. Como todos os traidores ao império yankee, estes provam o sabor do sangue e se viciam, até terminarem mortos. O monopólio da violência não pode fugir das mãos dos estrangeiros colonizadores, que precisam então, num ato de purificação própria, derramar o sangue de “seus aliados”. A tragédia da arrogância e prepotência sulista seca como água no calor nordestino, afinal de contas, quem nasce em Bacurau também é gente.
No Mad Max brasileiro, as classes estão bem vivas, a anarquia primitiva ainda não chegou ao desespero, o caos que Kleber propõem ao Brasil de “alguns anos”, com “execuções públicas às 14 horas” [todos devem ter visto na tv], parece afetar menos as cidades mais isoladas, logo, elas podem desaparecer. Para Karl Marx, o proletariado só poderia ser nacionalista se isto significasse derrubar a sua burguesia nacional, na ausência desta, são os cidadãos e cidadãs de Bacurau que decidem – inclusive se vão viver ou morrer. Não a burguesia, não os seus assassinos. Aí que o conflito Sul e Norte ganha uma preponderância engraçada, afinal, quem é realmente sulista e quem é realmente nordestino? Para o invasor imperialista, o “irmão do Norte”, somos todos sulistas; logo, insignificantes, logo, não faz diferença se morremos ou não. Isso é demonstrado quando o casal de motoqueiros não sobrevive cerca de 15 minutos na casa dos yankees. Não mais descendentes de alemães e italianos, como eles, mas macacos incivilizados a ser abatidos. A própria violência “branca” é mais gourmet, “que barbárie”, relata um dos assassinos estrangeiros ao provar daquilo que ele mesmo queria impôr às pessoas que ele nem sabe o nome. Neste futuro distópico, brasileiros são mortos por estado-unidenses, não por necessidades políticas, mas por diversão! Como caça. Quem irá elevar tudo isto ao patamar da política seremos nós mesmos, resistentes. Por muito menos na história, por situações de “desordem” e “caos”, já fomos abatidos diversas vezes. Basta se lembrar da Operação Condor, de El Salvador e do Chile de Pinochet.
Da apoteose catártica de uma diversão assassina, até mesmo com herança nazista (!), surge a síntese hegeliana do nordestino forte: o elemento post-Punk do Sertão que considera Che Guevara uma bicha. Lunga (Silvero Pereira – que na sua vida particular é travesti) é o bandido revolucionário brasileiro, o ser histórico que emerge com todas as suas contradições de acordo com a sua sociedade contraditória (como Hobsbawm traz em seu Bandidos). Renegado e distante, não sabemos o que ele e seus capangas faziam naquela fortaleza, e nem por qual motivo Pacote (Thomas Aquino) matava. Só podemos saber que a sociedade da região via com bons olhos os atos “incivilizados” de Pacote e Lunga. O que podemos pescar nas referências dadas, é que Lunga fora um ótimo escritor que abandonou a prosa pela violência direta, porque em todo coração revolucionário pulsa uma paixão ardente pela poesia e pela batalha.
Por isso é Lunga (que estampou durante semanas a revista Teorema, coberto de sangue e ódio) o personagem principal de Bacurau. Célebres atores, renomados internacionalmente como Sonia Braga e o alemão Udo Kier, tem o seu papel de destaque e o cumprem com função magistral, é claro. Mas a síntese da revolta (poética e armada), de quem sempre esteve preparado para aquele momento, está na ferramenta que é Lunga. Vejamos, a gente de Bacurau, que passa a detestar o prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima) e todas as suas políticas populistas, como agente do parlamento burguês, e que agora precisa resistir ao elemento invasor, não mais se escondendo, mas atacando, encontra em Lunga e em seus capangas, a ferramenta política e prática dessa luta por sobrevivência – que ganha ares internacionalistas e globalizantes ao final do filme, informando que não parece parar por ali. E de forma muito interessante, descobrimos que essa ferramenta não se encontra só no presente, mas no passado: o Museu. Este, por si só, funciona como três elementos principais: (1) como desprezo pelos invasores de fora, como já citado; (2) como resistência, onde Lunga incarna a herança cangaceira e reduz a sangue os seus inimigos e (3) pelo desprezo a história dos de “baixo” aos de “cima”, quando o sangue do inimigo se torna monumento histórico e quando Tony Jr, ao entrar pela última vez na cidade, é recebido com baldes de água e restos humanos. Ou seja, no elemento (3) temos a negação direta do (1), agora são as classes baixas que rejeitam a rejeição dos opressores e fazem destes seus troféus.
Um personagem como Lunga só poderia sair da cabeça de um crítico de cinema, cinéfilo e cineasta como Kleber Mendonça Filho. Se este via nas grandes metrópoles urbanas, como Recife, componentes de tédio, melancolia e terror contido na luta de classes, como O Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), é na rural e unida Bacurau onde tudo isso é esmiuçado e ganha contornos de “vamos ver”. Não foram poucos os que repararam que, na ameaça iminente, a população se refugia na sua história (Museu) e na escola (educação), dois elementos vistos como alvo pelo presidente Jair Bolsonaro. Também chama a atenção a ausência de um poder político, que também vem de fora na figura eleitoreira de Tony (vote 15 para melhorar de novo!), e na própria ausência de um local político, já que a igreja está abandonada e não se tem a presença de uma câmara de vereadores.
O que Juliano Dornelles e Kleber produziram, sinceramente, eu não via no cinema brasileiro desde 1969, em o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. A pedagogia da violência, a estética da fome e a estética do sonho ganham aqui o seu mais fiel herdeiro. Ao mesmo tempo, elementos modernos invadem a cena, afinal, como não associar o carro de som de Tony Jr com o Urso para prefeito de Londres em Black Mirror? A estética quente do sertão nordestino, a figura santa e isolada que redime os problemas da população periférica através da violência (Antonio das Mortes em Lunga) e o avanço tecnológico, que em Glauber se dava através da expansão das autoestradas (refletindo um momento de industrialização pesada no país) se modifica em Bacurau, onde as estradas são sempre feias e esburacadas, já decrépitas. O capital volta a se concentrar nos países centrais. E a tecnologia se apresenta de forma invisível e quase divina (em sinais de Wifi e GPS). Temos aí uma mensagem clara e bastante triste: o Brasil de Glauber ainda é o Brasil de hoje (crianças com fome, escolas faltando infraestrutura e distribuição da miséria), com a diferença de que, mais uma vez, os nossos inimigos estão na frente. Nada mudou.
Bacurau certamente se encontra naquele patamar de filmes a que Slajov Žižek denomina de “a verdadeira esquerda cinematográfica”, diferentemente de Titanic (1998) e Reds (1981), onde o elemento romântico do casal e da falsa luta de classes encontra-se, a termos subjetivos lacanianos, perfumada. O romantismo, no sentido de casal homem-mulher, é praticamente nulo no texto, reduzido a um direto “Cê quer trepar?” entre Teresa e Pacote, na qual o espectador, juntamente com a menina na mesa, reagem com um sonoro: eeeita! Essa é a intensidade proposta ao texto do filme, sequer há tempo para o amor que não o revolucionário, ainda que intenso. Fico pensando o que os psicanalistas mais ousados, como Freud, Slavoj e Lacan, diriam da cena do casal sulista de motoqueiros, ao matarem dois cidadãos de Bacurau. Estes dois, aliás, servem como antítese do casal guiado pela violência justa e anti-opressora de Teresa e Pacote, matando por matar. Enfim, certamente diriam que a frieza e a incerteza com que matam evidenciaria os seus problemas sexuais, (lembre-se do momento em que ambos tiram a arma para o assassinato, é com hesitação e até mesmo vergonha, quase culpa), o confronto orgasmático da morte aparece depois com um vulgar arrependimento, “será?”, “deveríamos?”, “de que forma”.. Eu não ficaria surpreso se descobríssemos que alguém ali não era o parceiro de fato do outro e que tudo não passava de uma “escapadinha” do ambiente jurídico do poder legislativo/judiciário, uma “ação”. Aliás, como são curiosas as cenas de sexo aqui, e uma delas certamente evidencia que Kleber e Juliano sabem com o que estão lidando em mãos, através do coito pós-matança dos dois atiradores. Incrível como o assassinato político assusta menos do que o assassinato orgasmático! Essa é a fundamental contradição e crítica que somos levados a ter.
Ivana Bentes, crítica de cinema, levantou uma questão fundamental: “Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e ataques?”. Lembro-me da leitura de Brown, analisando a política pós-moderna como “um sintoma de uma narrativa histórica rompida com a qual ainda não forjamos alternativas”, apesar das análises erradas deste para com o Estado e a democracia como tais, vejo que é exatamente este o momento em que vivemos. E é também curioso notar as diferenças que os atores e autores do filme trataram a política: Kleber disse que a interpretação de cada um é o que valia; Juliano que a cultura precisa ter um caráter político, refletir sobre a atualidade; Silvero Pereira foi a première do filme com um “Censura Não!” colado na boca e Sonia Braga, comentou que “Bacurau foi feito para que as pessoas voltem a conversar”(!!!). É como se estes não percebessem a amplitude da sua própria produção, ou no caso dos autores, percebem e preferem “não radicalizar”. Mas a pergunta de Ivana continua latente: como manter a tranquilidade em um Estado onde o governador do Rio de Janeiro, Witzel, fala em armar a população, mas diz que quem estiver armado na cabeça vai “levar na cabecinha”, qual a resposta a estes indivíduos poderosos e sanguinários contra a qual se encontramos indefesos e fragmentados?
A cena em que Tony Jr chega na cidade para receber os “vencedores”, depois do que deveria ser a chacina programada, evidencia um pouco isto, ao perceber a ira da população, o poder executivo tenta a todo custo se desvincular do braço miliciano do Estado que ousa o chamar pelo nome. “Não o conheço” é entoado pelo prefeito, “pare de gritar o meu nome”, na inexistência do braço violento do poder central, quem o toma agora são os próprios cidadãos, ainda que com uma certa piedade e finalidade simbólica. O velho alemão Michael, promete aos insurgentes antes de morrer que isso era só o começo [lembrando que nunca nos é apresentado a verdadeira situação do país e do mundo, e talvez os cidadãos ali nem saibam], mas não mais importa, o proletariado já mediu as suas forças e se viu fortalecido, tomaram o céu de assalto e não irão entregá-lo sem um potente e desgastante combate.
Quem já assistiu [ou leu, no contexto albanês] Abril Despedaçado, ou mesmo estudou um pouco a história do Nordeste, sabe que a tradição de colocar a camisa de um morto manchada de sangue no varal, ao vento, é muito significativa. Para além do luto, é um sinal de dívida pendente. Como não lembrar da mãe carioca que expôs, há alguns meses, a camisa suja de sangue com o símbolo do Rio de Janeiro ao mundo, após ter o seu filho de 14 anos assassinado por uma bala vinda da polícia enquanto caminhava à escola? Foi justamente essa a – pobreza – da crítica de Miguel Forlin, do Estadão, ao chamar Bacurau de “baixeza”, um “chamado às armas” sendo o “..exemplo do que há de mais reacionário e retrógrado no cinema brasileiro atual”.
Ora! Parece-me que Forlin não vê os lançamentos bombásticos e inúteis que o grande cinema nacional lança todos os anos com atrizes famosas, gastando em Paris, e atores medíocres passando-se de engraçados com as mesmas piadas de 10 anos atrás, travestidas de “piadas políticas”. O maluco ainda radicaliza fortemente ao colocar Bacurau como “uma linguagem muitas vezes televisiva”, falta-se aqui entender o que os críticos de cinema defensores dos exploradores burgueses entendem como televisão. A crítica, justamente idiossincrática, de Forlin, acusa Kleber e Juliano de produzirem uma película sem atmosfera! Isso mesmo, e ainda vai além ao acusar o filme mais atmosférico de 2019 de vazio, ao dizer que não se poderia falar dos norte-americanos [sic] e utilizar-se do gênero destes, que é o western! É eloquente que alguém receba em dinheiro para escrever isso e sequer vá para a seção de piadas infames.
Então sequer poderíamos fazer cinema, já que este foi inventados pelos franceses! Não poderíamos escrever em português, já que esta língua é a do colonizador! É cintilante que não apenas este, mas diversos outros “críticos de cinema” se utilizem desses argumentos rasos para enfraquecer determinado filme mediante a sua classe, os seus leitores e também para uma indicação ao Oscar estrangeiro. Mas é claro, como ganhar um Oscar falando mau dos imperialistas? A mentalidade é tão louca, que Forlin ainda ousa questionar sem perceber que indiretamente, responde a sua própria pergunta, ele questiona “Quem são os moradores de Bacurau? Pelo filme, não sabemos, pois só temos a imagem de homens e mulheres se reunindo para vencer uma guerra..”, ora, meu caro, homens e mulheres se reunindo para vencer uma guerra não diz nada sobre um povo? Sobre um contexto? Realmente, a união para esmagar uma guerra injusta não deve dizer nada sobre quaisquer homens, quaisquer mulheres. E ainda: “Quem são os estrangeiros? Também não sabemos, pois só vemos homens e mulheres se unindo para participar de um jogo doentio.” Gargalhadas e socos na mesa, o nosso jovem Feuerbach parece não compreender a sua negação da negação, detesta aqueles que decidem transformar o mundo, mesmo que pela arte. Ao responder a primeira pergunta na segunda, e a segunda na primeira, parece não entender que não importa quem são os estrangeiros e ao dizer que se trata de um jogo doentio, parece não entender que se trata de um jogo histórico, ainda que aqui se trate de um desmascaramento completo deste “game”. Ou a invasão do Iraque, da Bósnia, do Vietnã e do Afeganistão possuíam algo para além de um jogo doentio?
A melhor parte, é claro, reserva-se para a acusação de que Kleber e Juliano seriam irresponsáveis por querer que todos saíssem da sessão querendo iniciar uma revolução e combater o inimigo. Parabéns Forlin, porque é justamente essa a mensagem! Você entendeu, que do alto de seu escritório da imprensa burguesa, está do lado, se propõem a usura e defende o inimigo. É a crítica mais pedante que se pode fazer, acusar uma dupla de cineastas de fazer aquilo que eles justamente quiseram fazer. É como atirar na lata do lixo 519 anos de história, de resistência ao elemento estrangeiro (ou talvez devêssemos primeiro entender quem ele é..) e de crenças populares, como a aparição quase orixá de Dona Carmelita, a argumentum ad hominem aos filmes anteriores de Mendonça, que são muito bons por sinal –ao menos, bem melhores que as pseudo-críticas de alguns verborrágicos empolados.
Chegou-se, mesmo, a condenar o filme como petista! Ora, estes realmente não entenderam os últimos 20 anos de Brasil, além de não entenderem nada de Bacurau. Não entendem, ou se fazem de tolos desentendidos, que o Partido dos Trabalhadores nos últimos anos serviu como uma engrenagem crucial para o apaziguamento da luta de classes. Este apaziguamento não mostra tranquilidade em momento algum na pequena cidade do interior nordestino, não seria surpresa se Tony Jr fosse um mero prefeito de PT, PSB ou PCdoB.
O ator alemão Udo Kier, que já trabalhou com Rainer Werner Fassbinder e Dario Argento, disse que ficara impressionado com o set do filme. “Tudo que estava em cena era parte daquele lugar”, disse. Também mostrou satisfação em trabalhar com dois cineastas brasileiros e que gostaria de trabalhar novamente, citara que em Cannes, muitos vêm e vão [é famosa entre os cinéfilos a questão da bolha cinematográfica do festival], sem dizer nada, mas que não era o caso deste filme da qual integrara. Chegou a dizer que talvez o seu personagem trabalhasse para o governo brasileiro, talvez apenas para o prefeito.. Teria diferença? São muitas questões não ditas, subjacentes, mas que ao mesmo tempo gritam na nossa cara que estão ali. E aí depende da experiência cinematográfica/política e mesmo da disposição para absorver. Bacurau é um filme de longas e múltiplas camadas – políticas, estéticas, referências cinematográficas e metafísicas, intangíveis, materiais, históricas, impalpáveis, etc.
O caixão de Dona Carmelita, que numa cena metafórica estremece e expectora água, assim como os caixões atropelados na estrada, cumpre a função de nos apresentar um mundo infernal que está por vir, mas também representa uma força contida, que vem de baixo e começa a transbordar. Não é normal que um caixão transborde água, assim como também não é normal, para aqueles que mandam no mundo, que os subordinados se organizem e partam para o enfrentamento. E quando isso acontece, mais e mais, aqueles personagens, assim como quaisquer personagens que na história enfrentaram os seus vilões, expurgaram os seus fantasmas, vão adquirindo uma força própria, num vórtice giratório de ganhos de força e mais força. A cena mais forte da película – se é que posso dizer isso, quando uma criança é assassinada brutalmente, e a sua mãe rasga o silêncio do sertão com um grito de dor, a mensagem fica cristalina: o povo, as massas, podem ser ludibriadas por muito tempo, podem ficar em monorritmia por décadas, mas não ousem derramar o sangue dos filhos da classe trabalhadora, não ousem tirar o futuro daqueles que já não o têm.
Porque Bacurau é justamente isto, uma reinvenção dos termos sinestésicos glauberianos e euclidianos deste Brasil permeado de classes populares que ousam resistir, ousam ganhar voz, e que irão para as armas se assim for preciso! E será. Mais do que arte, é um manifesto. Evoca Canudos de Antônio Conselheiro; Recife de Domingos José Martins; Marinaleda de Gordillo; a Palmares de tantos Zumbis; a Comuna de 1871 e tantas outras cidades-fortalezas do proletariado. Indo para além de uma simples diversão do spaghetti western e seus referenciais contra-plongée em planos abertos, o suor e o sangue do povo latino são levados a potência total. Se na minha sessão vibrávamos com as mortes dos inimigos, é porque o cinema brasileiro também anda fazendo o nosso sangue ferver, e as classes mais abastadas temem qualquer rebelião e atacam com voracidade, ainda que seja num filme. O rosto manchado de sangue e suor de Lunga - que estampou diversas revistas e jornais, das mais importantes de cinema no mundo, evoca o mito do forasteiro que protege os seus, do latino rebelde, que não cansa de reencarnar nas mais diversas figuras, ainda que agora tenha um curioso cabelo comprido e unhas pintadas. É isso, sabemos, acima de tudo, que se alguém precisar morrer, que seja para melhorar. E a quem não me entendeu.. haha, não perde por esperar.
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