“Winchester '73” talvez seja um dos filmes mais emblemáticos do gênero western ou faroeste. A despeito das particularidades e mesmo inovações da trama principal (cuja real protagonista é, para muitos, a arma do título), o longa-metragem, além das convenções narrativas e visuais que carrega consigo, celebra justamente aquilo que é um dos principais pilares desse gênero: a busca pela afirmação de uma potência masculina. Em meio ao ambiente hostil do Velho Oeste, o vencedor será o cowboy mais corajoso, viril e habilidoso. Aquele que melhor manejar sua pistola, que conquistará o coração das belas moças dos bares, que derrotará os índios e os trapaceiros e que honrará as tradições e morais de seu país. “Winchester '73” concentra-se na disputa por esse posto, ou seja, na verdadeira luta entre egos de diferentes homens que desejam, todos eles, essa afirmação quase absoluta como o maior e mais digno cowboy.
A Winchester, no caso, é a arma mais potente do Oeste – e sendo uma derivada da pistola, ela remete, por sua natureza e até por sua própria imagem, à ideia do falo, o símbolo por excelência da potência masculina (no sentido mais conservador do termo). Valoroso, portanto, aquele que possuir esse grande falo, quase onipotente e invencível, e óbvia, naturalmente, a cobiça de todos os homens por esse falo, como já sinalizado na primeira cena em que tanto meninos quanto veteranos contemplam admirados o rifle exposto em uma das vitrines de Dodge City. Mas concomitante ao desejo por essa potência masculina, também prevalece a boa e velha “moral americana”. Desde o princípio identificamos quem será o definitivo dono da potente arma: o Lin McAdam de James Stewart, “cavalheiro” honesto, corajoso e ainda pacífico em seu lema de matar apenas por necessidade. Não que o sujeito seja um “mocinho” unidimensional: McAdam possui sua complexidade, seja pelos dolorosos traumas de seu passado seja pela vaidade que também acaba o tomando em sua busca pela Winchester roubada. No entanto, mesmo as contradições e cicatrizes do herói acabam por torná-lo mais forte, digno e respeitado, e no final o próprio orgulho e impetuosidade do cowboy culminam num ato válido de justiça.
Nesse sentido, “Winchester '73” concentra-se nos rivais (diretos ou indiretos) da definitiva legitimação desse “herói americano”, alto, branco e destemido (embora o mesmo seja valorizado desde o começo). Nisso, se destaca o Holandês Henry Brown (Stephen McNally), o principal arqui-inimigo de McAdam e, não por acaso, o completo oposto do protagonista: cínico, arrogante e traiçoeiro, dedica-se aos roubos e trapaças e mata praticamente por prazer (e nisso, Henry sequer é considerado um “vilão americano”; o rapaz é chamado de Holandês). Mas ao longo da jornada também temos o antagonismo (mesmo que sutil) de outros “tipos clássicos” do Oeste como o ameaçador líder indígena Jovem Bull (Rock Hudson), o covarde Steve Miller (Charles Drake) e o malicioso e ainda mais traiçoeiro Waco Johnnie Dean (Dan Duryea). É essa diversidade de personagens, inclusive, um dos principais atrativos do longa-metragem, o qual também se sobressai pelos atritos e duelos igualmente desencadeados nesse círculo paralelo de coadjuvantes, o que torna a disputa pelo falo ainda mais universal e complexa – e McAdam não demora a quase perder o título de protagonista dado esse generoso número de tramas paralelas (e como já mencionado, não é a toa que muitos considerem a Winchester a verdadeira personagem central da narrativa).
O cineasta Anthony Mann, portanto, formula um vigoroso apanhado das convenções e mesmo das simbologias do faroeste, ainda que manifeste a sensibilidade e o talento particulares de sua direção, vide a inegável habilidade com que são conduzidas as cenas de maior ação ou o belíssimo “chiaroscuro” evocado em algumas das cenas noturnas – e nisso deve-se mencionar a inspirada fotografia de William Daniels. Mas a partir das convenções do western, tornam-se inevitáveis certos problemáticos conteúdos do gênero, a começar pelo papel do indígena na história. Anthony Mann até demonstra certa compreensão em relação aos aborígenes: antes de tomar a Winchester para si, o Jovem Bull manifesta a raiva dos nativos perante os homens brancos que roubaram suas terras e mataram suas mulheres, e durante seu discurso o vigoroso líder é contraposto à intensa luz de um crepúsculo. No entanto, o índio permanece em seu posto de inconveniente empecilho ao “mocinho” do Oeste, especialmente no ataque ao acampamento em que McAdam encontra-se refugiado (passagem em que o espectador, em sua maior intimidade com o cowboy, continuará torcendo contra o aborígene).
Pior: embora conquiste a Winchester, o indígena claramente não consegue utilizá-la: durante o conflito, o rifle torna-se mais uma lança ou um sinal de ataque do que uma potente arma de fogo. O Jovem Bull, portanto, não é digno do grande falo, visto sua incapacidade de manejar a arma, mesmo que seja apresentado como um homem de notável virilidade – e mesmo que os indígenas estejam em maior quantidade e igualmente portando armas de fogo, eles ainda serão derrotados por um grupo diminuto de homens brancos armados. Por fim (e importante mencionar), se o líder indígena é encarnado por um Rock Hudson alvo e de forte sex appeal (vide seu peitoral nu e imponente), o indígena visto durante a disputa pela Winchester, de traços físicos mais semelhantes aos de um aborígene, é convertido em caricatura barata do nativo. Mas além da problemática do índio, também prevalece, como consequência desse cenário tão masculino, a submissão da figura feminina. A Lola Manners encarnada pela evocativa Shelley Winters não deixa de ser uma personagem forte, que manifesta, por exemplo, sua clara antipatia à brutalidade de certos cowboys – e em dada passagem da narrativa, a moça declara suas efetivas habilidades com a pistola, numa fala claramente ambígua e provocadora.
Entretanto, Lola ainda é diminuída pelas vontades e desejos das personagens masculinas. Mesmo francamente repugnando Waco Johnnie Dean, a moça permanece ao lado do bandido até ser resgatada por seu amado cowboy – não por acaso o “herói americano” de James Stewart. E naturalmente, aquele que possui a poderosa Winchester também recebe o amor da bela dama: o grande falo também representa a conquista do sexo oposto. Mas esse machismo se reflete até na humilhação imposta por Waco Johnnie ao covarde Steve Miller. Ao pressionar o outro a fazer e servir um café, Johnnie submete o sujeito a um trabalho doméstico tradicionalmente dirigido a uma mulher: um grande golpe, portanto, à “masculinidade” do companheiro, mesmo que este, ironicamente, esteja com a posse da Winchester (e é com a extrema malícia dessa ironia que Steve depara-se com sua tragédia). Isso posto, é natural que no começo do longa, um quadro mostre duas mulheres observando de longe a disputa de tiros entre cowboys, bem como é natural que Lola maneja com dificuldades a pistola durante o embate contra os índios. A mulher ainda é privada desse símbolo de potência; ela permanece em função do cowboy que a atinge e a resgata.
Mas a despeito do peso desconcertante dos preconceitos e moralismos, “Winchester '73” é um título mais do que relevante do western, seja pela beleza convidativa de sua história e estética, seja pela abordagem mais explícita e intrigante dessa busca pela onipotência masculina – talvez uma das bases de toda uma mitologia universal, como apontaria André Bazin, mas aqui personificada no cowboy que conquistará e dominará o Oeste em prol dos valores e futuros progressos de sua amada América.
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