Acredito que, ao assistir Kramer VS. Kramer, a reação da maioria dos espectadores seja condenar sumariamente a personagem Joanna Kramer, interpretada por Meryl Streep (e que lhe valeu seu primeiro Oscar, como melhor atriz coadjuvante). Ao abandonar o lar e o filho, a personagem cometeu um crime praticamente imperdoável em nossa sociedade, ela rompeu com aquilo que é construído como não só a essência do ser feminino, mas também aquilo que mais o aproxima da redenção, a maternidade. Ainda que o filme reforce, de certa forma, essa percepção ao contar a história do ponto de vista do pai, não acredito que a película procure fazer julgamentos definitivos de modo consciente. Não há maniqueísmo, pois o pai não é um herói e tampouco a mãe é uma vilã.
Neste comentário, vou me deter apenar em algumas observações sobre a mãe e o pai inseridos em observações sobre a construção dos papéis de gênero no filme. Começando pela mãe, que me parece uma personagem mais problemática. Joanna Kramer me lembrou da Laura Brown interpretada por Julianne Moore em As Horas (outro importante filme a questionar os papéis de gênero tradicionais de homens e mulheres e que, não por coincidência, também conta com Meryl Streep no elenco). Laura Brown, como Joanna, também abandona os filhos e o lar para viver, pagando um alto preço para isso, novamente como a personagem de Meryl Streep. Parece-me muito complexo condenar imediatamente uma mulher que toma essa decisão, ao pensar em toda estrutura sociocultural que pesa sobre ela desde o nascimento, construindo-a de modo que ela se sinta feliz na compulsão de desempenhar os papéis tradicionais de seu gênero. Romper com isso a expôs a todo tipo de retaliação sociocultural, a começar pelo próprio sentimento de repulsa e queda na sua autoestima por se acreditar um fracasso e indo até ao interrogatório cruel do advogado do pai. Como bem disse a vizinha no início do filme, ela precisou ter muita coragem para sair de casa. Como mulher, a personagem tinha todo direito de procurar sua felicidade em outro lugar que não na família tradicional. A culpabilização da mãe é reforçada sempre que temos em mente a figura do filho criança. Inocente, o sofrimento da criança, suas lágrimas, nos faz repreender a mãe, atualizando a estrutura social que coloca o ser mãe como a aptidão mais natural da mulher. Obviamente, o filho em si de nada tem culpa. Porém, a relação filho-mãe, conforme ela é construída na nossa sociedade, é uma das vias de manutenção da dominação masculina, pois a mulher é treinada, educada, construída, compelida a se ver como naturalmente mãe antes de tudo, colocando isso em primeiríssimo lugar. Novamente, o filme falha em não dar mais espaço e voz à mãe, de modo que suas escolhas tão contra o corrente possam fazer algum sentido além de desejos egoístas e circunstanciais.
O pai, após a saída da mãe, é uma figura bastante interessante. Podemos concluir que, antes, ele era o típico homem, envolvido com o trabalho e feliz na concepção de q sua tarefa como pai/marido era "to bring home the bacon". Após a mãe ir embora, ele é obrigado a desempenhar as tarefas domésticas, consideradas em nossa sociedade como tipicamente femininas. E isso não vem sem um preço. Sua carreira até então promissora sofre um forte baque e entra em decadência. Porquê? Porque não se espera q um homem possa se efeminar (e cuidar da casa e do filho é se efeminar na visão corrente e tradicionalista). Ao se efeminar, o homem passa a ser percebido como cada vez menos apto a desempenhar tarefas viris, masculinas. Essa percepção é objetivada pela organização do trabalho que é feita de modo a impossibilitar uma dedicação dupla do pai, ele cada vez mais é forçado a escolher entre a domesticidade e a vida profissional. Por isso ele perde horário, prazos, clientes e dinheiro até ser demitido. Com isso, é reforçada a noção de que o homem, para ser homem, não pode desempenhar tarefas femininas, que reduzem sua virilidade. Em circunstâncias normais, esperar-se-ia que o pai rejeitasse a feminização, arranjando logo uma babá para o filho e seguindo sua vida. O fato da personagem não seguir a direção tradicional é o que dá mais crédito ao filme, tornando-o verdadeiramente interessante. Ted Kramer, interpretado por Dustin Hoffman (que também venceu o Oscar pelo papel, porém, como melhor ator), ao decidir assumir todas as tarefas ligadas ao ambiente doméstico, mantendo suas obrigações no ambiente público e arcando, orgulhosamente, com os custos sociais dessa atitude, é verdadeiramente subversivo. Em alguns aspectos, mais subversivo e transgressor que a personagem da mãe. É claro que essa percepção é viabilizada pelo modo como a narrativa é articulada no filme, que privilegia sempre o pai em detrimento da mãe. Por isso mesmo, Ted me parece uma personagem melhor construída que Joanna.
O final do filme merece um comentário de passagem, pois me pareceu imensamente insatisfatório. Mesmo sendo o final feliz para o pai, o final tem algo de conservador ao reforçar a ideia de que a mãe era uma mulher inconstante, indecisa, frívola e frágil, cuja fuga de pouco lhe valeu para se tornar uma pessoa firme e bem resolvida. Acredito que se ela tivesse ficado mesmo com a guarda do filho, o final teria sido mais dramático, reduzindo o pai a um grande sofrimento e diante da conclusão que seus sacrifícios pelo filho foram inúteis. Tal final seria mais verossímil. Fico com o questionamento, por quê todo filme tem que ter um final feliz?
Em conclusão, não acho que o filme seja machista, pelo menos não totalmente. Ele retrata conflitos típicos das sociedades pós-industriais em que a família passa por reestruturações marcantes e nas quais a dominação masculina enfrenta desafios, contestações ao mesmo tempo em que se transforma, assumindo novas formas. Não é um filme perfeito, sua principal falha é dar pouco espaço para a mãe. Ao não focar sua jornada, seu sofrimento e sua transformação, ela fica perto da megera que a sociedade gostaria que ela fosse, o que não é o caso, como prova, mais que qualquer outra, a cena de seu depoimento. A trajetória do pai e seu relacionamento com o filho são os grandes momentos do filme, cuja sensibilidade, nessas cenas, é grande. Assim, em geral, considero a obra um filme ótimo.
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