Abre-se uma leve atmosfera de competição sobre uma inocente partida de vôlei escolar. A câmera sobrevoa o jogo apresentando o campo e suas jogadoras até pousar sua lente numa figura peculiar que se encontra num estado de desorientação durante a partida. A bola é passada para ela, mas ela falha. O jogo está perdido praquele time, que agora desconta a frustração na pobre adolescente que apenas errou o repassar da bola. Corta então para a cena no vestiário feminino, onde as jovens descansam após o cansativo treino. Uma câmera em terceira pessoa passa a mergulhar dentro de todas as alas daquele lugar, dando agora mais enfoque às figuras que mostrara em campo, até novamente se dirigir àquela mesma garota; agora no chuveiro, ela fez movimentos leves com o sabonete por toda a sua pele, por um momento, aquele espaço é só e unicamente dela, então ao passear suas mãos pelo corpo, ela tem uma estranha sensação. A música de fundo cessa para dar espaço aquele vermelho que atravessa do corpo da menina e se esvai com a água do chuveiro. Os gritos e o desespero começam a tomar conta. A menina exclama por ajuda, corre até suas colegas, e ao verem sua situação de agonia passam a empurrá-la, ignorar seus pedidos e, por fim, humilhá-la, atirando contra ela absorventes internos, concluindo assim um espetáculo de sadismo.
Esse é o modo como Brian De Palma dá início a sua história. Sem prestar esclarecimentos sobre a identidade de cada qual das personagens que não sua protagonista, Carrietta White (Sissy Spacek, em sublime atuação). Mas não apresentar os demais personagens foi mesmo o melhor, pois durante a triste introdução, já sabemos de que lado cada um está, já temos ciência da perversidade presente na mente de cada uma das jovens naquele vestiário, e sabemos principalmente que a jornada de chacota e humilhação de Carrie White só está começando. Mas quais os motivos que podemos atribuir a essa perseguição que a jovem sofre por parte de suas demais colegas? Poderia se dizer que pelo fanatismo religioso da mãe (Piper Laurie, em uma interpretação monstruosa) da jovem, que de tão complexada na filha não se corromper no pecado, isolou-a e excluiu-a de uma convivência normal e saudável com a sociedade, acabando nem ao menos lhe ensinando as mudanças físicas naturais no corpo de uma mulher. O diretor, por sua vez, filma isso de uma forma direta, crua, sem pintar em Carrie auréolas e asas angelicais, afinal, diferente dos seres celestes, ela é uma humana, que nutre seus desejos de vingança contra que a faz mal, podendo punir seus carrascos de uma maneira digamos inusitada. Ela tem poderes telecinéticos, que a permitem deslocar objetos com a força de sua mente, e esse misterioso dom é o que impulsiona a trama e proporciona-lhe resoluções catastróficas.
De Palma faz com que Carrie – A Estranha seja mais do que apenas um filme de terror, o diretor captura, antes de tudo, o profundo arco dramático presente no romance escrito por Stephen King, priorizando mais a construção de seus personagens e de sua história, que o horror propriamente dito. Praqueles que assistem aguardando o mais visceral dos filmes de carnificina, quase certamente, se decepcionaram, já que o enredo vai além, muito além da exposição de tripas e do preparo de seus personagens como bovinos para o abate. De Palma pontua sua produção com um drama doloroso, intenso, sobre uma menina que é simplesmente esburgada do meio em que vive, tanto pelos colegas quanto pelos orientadores educacionais, e principalmente pela “prisão de castidade” que a sua mãe, uma fervorosa religiosa, construiu.
O cineasta adapta a famigerada obra literária do mestre do horror de uma maneira ousada, dando a Carrie - A Estranha uma aura autoral, uma identidade própria. Não para menos este é reconhecido como um dos melhores filmes de sua carreira e uma das melhores adaptações de um livro de King – e é importante ressaltar que o tom investigativo das páginas fora abandonado. De Palma filma tudo de maneira quase sádica, apresentando ao público cenas profundamente otimistas, para aplica-lhes um desfecho horripilante. Seja na felicidade da jovem excluída ao ser convidada ao baile de formatura, ou até mesmo no incentivo de sua professora para que Carrie se arrume e realce sua beleza. De forma brilhante, ele consegue alimentar pouco a pouco nossas esperanças com a maré de sorte que atinge nossa protagonista; por um momento até, acreditamos ser aquele uma espécie de conto da Cinderela, onde mesmo que ela seja humilhada, tanto pelas irmãs quanto pela madrasta, a Gata Borralheira poderá contar com o amparo de sua fada madrinha, e, por fim, ter seu tão merecido final feliz. Mas isso não acontece com Carrie White, pois diferentemente do conto de fada, ninguém vem para apanhar o seu sapatinho de cristal.
Bom trabalho, Júnior. Gostei da descrição das cenas iniciais. E o final do comentário foi quase tão \"heartbreaking\" como o próprio final do filme. Deixa aquela sensação de tristeza...*.*
Ótima crítica!
Bela crítica, que destaca bem as principais qualidades da obra.