Ouve-se em determinado momento de projeção: “Você sabe que o som, as vezes, não se dissipa por aí né? A fala, a conversa que a gente tem, elas ficam rodando pelo mundo afora.” Em Permanência, outro recente acerto do cinema pernambucano, não dissipa-se o som. Nem dissipam-se as memórias e o afeto entre as personagens, por mais que eles os tentem silenciar.
Acompanhamos Ivo, fotógrafo recifense, em São Paulo para sua primeira exposição individual. Ele hospeda-se na casa de Rita, uma antiga namorada, que está já casada. O que habita ainda nos dois, porém, torna difícil a estadia de Ivo, que o terá de conciliar também com outras angústias pessoais, como o encontro com o pai não visto há anos, seu caso com Laís, funcionária da galeria de sua mostra, e a presença incômoda de Mauro, marido de Rita.
Aquilo que se conta, no entanto, não é apenas a triste história de amor. Em seu primeiro longa, Leonardo Lacca examina em detalhes os sentimentos que cerceiam suas personagens, como um estudo sobre aquilo que não se pode ver. Há atenção aos pequenos gestos, aos olhares e aos silêncios das conversas, que normalmente nos passam desapercebidos, permitindo que os atores realcem fisicamente aquilo que os diálogos do filme suprimem. Ao optar por estes diálogos duramente realistas, com suas pausas e incompletudes, Leonardo Lacca delega a si, enquanto diretor, a tarefa de revestir a obra em seu tom vago e distante, incorporando à narrativa toda a turbulência emocional pela qual atravessa Ivo e Rita, e que ambos insistem em ocultar.
Algumas vezes, contudo, não é possível ocultar. Mostram-se frágeis ante a velha paixão logo na primeira cena do filme, num bonito quase beijo. Outras vezes, como quando Ivo deixa escapar lágrimas observando Rita cozinhar, ou quando vão ao cinema e enquadra-se longamente as mãos inquietas dos dois. Tais momentos quebram a frieza constante de Permanência, e rendem sequências de especial sensibilidade. Revelam a profundidade dos sentimentos emudecidos, tratando-os como força dificilmente controlável, e que moram no subtexto fundamental dos atores, no melancólico tratamento dado a São Paulo, ou na frequente utilização de simbolismos.
Simbolismos tais quais as intrigantes referências ao café, o uso recorrente de reflexos em vidros nos planos do filme (para, talvez, sublinhar as tantas significações escondidas na própria realidade), e, naturalmente, a metáfora essencial do enredo: a profissão de Ivo. Um fotógrafo, portanto um homem que lida já em seu ofício com o impasse do tempo, uma vez que inerente à fotografia está sua capacidade de tornar vivo e contínuo o passado através do presente. Assim como ganham peso as memórias dos dois nesta visita de Ivo a São Paulo, também descarrega-se em parte a dor deste ao deixar para Rita, em sua despedida, um rolo cheio de velhas fotos que tirou dela e não haviam ainda sido reveladas. Permaneceu o amor, como permanecem as fotografias.
Irandhir Santos encarna com o êxito de costume a obscuridade emocional que contamina os dias de Ivo na cidade. A confusão de sua relação com Rita o leva a buscar distração na figura de Laís, simpática moça paulistana que trabalha na galeria, mas que pouco pode oferecê-lo além do sexo casual. Do outro lado, a harmonia entre Mauro e Rita vai gradualmente sendo afetada pela presença do ex, nascendo de sutilezas, como o casaco dela emprestado a ele num dia frio, até culminar, também, no sexo sem prazer e sem sentido. Como se evidencia em uma divagação de Ivo no vagão do metrô, quando imagina o corpo nu de Laís sendo entornado por café, ilustrando assim o fracasso em suas tentativas de abstrair-se do desejo por Rita, e de tudo aquilo que lhe remete a ela, como o café.
Permanência é, afinal, o recorte breve de um vasto relacionamento. Insere-nos intimamente no retrato de alguns poucos dias, exaustivos e irresolutos de tal forma, que transparecem por seu decurso o passado entranhado no presente e o futuro dolorido da saudade. Se esta obra aparentemente singela, engrandecida em suas nuances, confirma mais uma vez o talento de Irandhir Santos (presente ainda em outros dos principais destaques do cinema autoral brasileiro em 2015, como “Ausência” e “História da Eternidade”), igualmente se constata a competência de Lacca, nesta estreia que aborda de forma tocante o tão complexo emaranhado de sentimentos dos seus personagens, e que emanam por todos os cantos do filme.
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