Rob Marshall penetrou tão fundo na alma de Fellini que acabou tornando-se um de seus personagens. Tornou-se Guido, mas ao contrário deste não conseguiu renunciar à realização do filme, mesmo que não houvesse idéia alguma. Nine é o resultado de um diretor sem idéias em crise. Talvez seja melhor pensar assim.
Fala-se por aí (e com razão) que Hollywood perdeu o gosto e a mão para a realização de musicais. Na década passada por exemplo, tivemos apenas dois (e que dois!) : Moulin Rouge e Chicago. Ao anunciar que iria realizar seu segundo musical, Rob Marshall deixou todos em pavorosa. Se conseguisse realizar um melhor que Chicago seria simplesmente fantástico. Pois vamos aos fatos: A cada notícia relacionada a Nine os cinéfilos iam à loucura. O fato de ser uma homenagem à Fellini, a metalinguagem, o elenco estrelar-oscarizado, as belíssimas fotos dos bastidores... Deram a faca e o queijo para Rob Marshall, mas quem disse que não seria difícil?
A fotografia é belíssima e chega a ser um pecado que não tenha sido tudo assim. O filme sofre de uma anarquia geral. É como se o diretor tivesse gravado uma dúzia de cenas com alguns astros conhecidos seus e juntado-as nesse Nine. O que mais dói, é que o filme conjuga o mais belo (a cena de Saraghina) com coisas tão erroneamente encaixadas e planejadas que chega a ser constrangedor em alguns momentos (a cena de Luisa Contini). Não há coesão. E é tal falta de coerência que não permite que nos encantemos com o filme quando ele termina. É como se tivessem feito uma adaptação de sem levar em conta o surrealismo presente ali, sem levar em conta que a obra é completa em toda a sua extensão e que apoderando-se apenas de uma parte (no caso, da parte literal) não haveria total constituição de sentido. E de fato não houve. As cenas do filme que remetem à Oito e meio são cruéis para quem já assistiu ao fantástico longa de Fellini, pois são infinitamente inferiores e vazias de sentido. E as constantes comparações com o outro tornam o desastre ainda pior.
A idéia inicial de Nine é maravilhosa. Acontece que durante o longa suas intenções não ficam bem claras. Não sabe-se se ele pretende ser uma discussão sobre a Itália e seu povo ou se quer ser também uma alegoria da falta de criatividade. Somos ainda levados a concluir que faltou um diretor à Nine. Inspiração e matéria-prima a ser trabalhada foi o que não faltou. O problema é que a síndrome de Guido talvez não tenha deixado Marshall trabalhar. É uma pena, mais um fracasso na lista da crise criativa de Hollywood.
Nine é um musical e tem que ser julgado como tal. Ao contrário dos filmes do seu gênero ele não consegue nos empolgar. Não é romântico como Moulin Rouge e também não é vibrante como Chicago. Não é bonito como a Noviça Rebelde nem estonteante como Cantando na Chuva. Do jeito que foi concebido, Nine não nasceu para ser um musical. Em algumas cenas temos músicas absurdamente feias e que claramente foram forçadas a acontecer. Alguns atores não são cantores. Definitivamente.
Daniel Day-Lewis não é Marcelo Mastroianni, tenta ser e consequentemente não consegue. Um grande ator como ele teria condições perfeitas de criar seu próprio Guido mas não sabemos porquê, resolveu não fazê-lo. Acabou por não sair das sombras de um astro. Marion Cotillard faz o que pode com a estranha Luisa Contini que a é dada. Penélope Cruz faz de Carla uma ninfeta extremamente sexy e genial apesar da personagem fazer uma passagem um tanto quanto estranha pelo filme. Nicole Kidman consegue construir uma boa Cláudia com sua meia dúzia de falas. Sophia Loren é figuração de luxo. Sua cena principal é acompanhada por uma música horrorosa (como a maioria das músicas do filme) e ela não precisa fazer grande coisa para mudar a situação. A personagem de Judi Dench não acontece e mesmo assim ela consegue destacar-se como uma das melhores. Fergie é a grande surpresa. Sua Saraghina é maravilhosa e talvez a única coisa que realmente encante no filme.
Felizmente, nem tudo está perdido em Nine. A cena de Guido com todas as musas é extremamente agradável e chega até aparecer que o filme será um verdadeiro espetáculo. A fotografia, como já disse, é belíssima. A idéia de fazer várias cenas com um mesmo cenário base (um palco) é muito boa e dá a impressão de estarmos assistindo a um espetáculo da Brodway. A cena dos Folies Bergères é também um acerto e uma das únicas músicas bem escritas está presente aqui. O grande mote do musical está na cena de Saraghina, a melhor do filme. O final é tão bonito que me faz lamentar de novo o fato de não ser tudo assim.
No final das contas Nine deixou-me um nó no peito. É que a sensação de que algo poderia ser melhor incomoda demais. Fellini se revirou no túmulo.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário