Caso você não acompanhe os noticiários, a Grécia vem passando por uma crise econômica há alguns anos. Longe daqui querer explicar de forma técnica e detalhista os motivos para o caos financeiro grego. Todavia, de forma bem superficial (e ainda assim tediosa), o berço dos jogos olímpicos deve bilhões de Euros, causando um profundo déficit de orçamento e desconfiança no mercado internacional. E olha que lá habita apenas 11 milhões de habitantes – o Brasil tem, aproximadamente, 18 vezes esse contingente populacional.
E crise financeira é motivo pra tirar o sono de um país – nós bem que estamos entendendo, mesmo não chegando perto da Grécia. Só que, numa forma bem paradoxal, a República Helênica tem um mercado em plena expansão: o cinema. No nascimento deste novo século, o “novo cinema grego” virou celeiro de produções cada vez mais mirabolantes, provocativas e polêmicas.
O grande pontapé para essa onda aconteceu em 2009 com “Dente Canino”, de Yorgos Lanthimos. O longa, que venceu diversos prêmios mundo afora e foi indicado ao Oscar de “Melhor Filme Estrangeiro” (infelizmente perdendo), conta a história de uma família formada pelo pai, mãe e três filhos, sendo um rapaz, o mais velho, e duas garotas. A enorme casa, afastada do mundo, é a redoma de vidro dos filhos: eles nunca saíram de lá. Tudo o que eles conhecem da vida foi ensinado pelos pais, que deturpam o real significado das coisas. Por exemplo: para eles, um avião passando pelo céu não é um avião passando pelo céu, é um brinquedo prestes a cair – e a mãe, às escondidas, joga um avião de brinquedo no meio do jardim para a alegria dos filhos.
Existem na casa algumas regras básicas. Os filhos não podem ultrapassar a enorme cerca, pois o mundo é cruel e facilmente pode os matar. Eles só poderão sair pelo portão quando o dente canino cair – ou seja, jamais, já que a dentição de leite há muito tempo se fora, antes mesmo de os filhos desejarem sair dali – coisa que eles não desejam. Toda aquela disfuncional realidade funcionava muito bem até que o pai, preocupado com os impulsos sexuais do filho, traz regularmente uma empregada de sua empresa para fazer sexo com o rapaz. A entrada desse corpo estranho na casa vai arruinar a paz de outrora.
Bizarro, não? Pois é, é assim que a nova safra grega vem despontando. Em 2015 tivemos outro exemplar grego para se unir ao freak show, “A Lagosta”, também de Yorgos Lanthimos. O longa se passa numa realidade paralela, onde é terminantemente proibido ser solteiro. David (Colin Farrell), coitado, perdeu a mulher a para outro homem, o que faz o governo bater à sua porta em meio à dor para retirá-lo da Cidade e o levar até o Hotel. Lá, ele tem 45 dias para encontrar um par; caso falhe, ele virará um animal à sua escolha e será solto na floresta.
É isso aí. Ao chegar no Hotel, ao lado de Bob, seu irmão, que foi transformado em cachorro por não conseguir encontrar um amor, David passa por um criterioso questionário, que pergunta seu status atual e qual tipo de relacionamento ele deseja, hétero ou homossexual. “Não pode ser bissexual? Eu fiquei com um cara na escola uma vez”, pergunta ele. Infelizmente a resposta é não. Já nos primeiríssimos segundos o roteiro de Lanthimos debocha da padronização do amor que impomos à pessoa do macho. Meio cabisbaixo David aceita “ser hétero”.
Logo depois o nosso protagonista recebe a visita da Gerente do Hotel (Olivia Colman), que explica algumas regras básicas do local, como a proibição de masturbação e a extensão da estadia: um dia a mais por cada Solitário (ex-hóspedes que fugiram para a Floresta e lá vivem clandestinamente – e solteiros) que ele caçar com dardos tranquilizantes. No fim, pergunta qual animal David gostaria de ser transformado caso falhe: uma lagosta. “Excelente escolha”, parabeniza a Gerente, enfatizando que poucas pessoas escolhem animais “incomuns”.
Esses primeiros minutos conduzidos em intimidade com David nos coloca como cúmplices daquela situação, pois vamos, juntamente com o personagem, aprendendo e nos adaptando a toda aquela estranheza, além de, evidentemente, nos perguntar o que faríamos ali.
Antes de sair, a Gerente prende a mão direita de David na parte de trás do cinto. “Para você ver como é ruim não ter ajuda”. Começa aqui o show insanamente artificial de manipulações do Hotel para provar por A + B que ser solteiro é uma maldição. Outros métodos nada sutis são encenações para os hóspedes de situações corriqueiras, colocando em xeque a importância de ter alguém do seu lado. Num momento vemos um funcionário do Hotel no palco em duas situações. A primeira, “solteiro”, o mostra comendo, se engasgando e morrendo. Na segunda, “com alguém”, mostra a mulher correndo e conseguindo fazê-lo respirar. Viu? Ser solteiro vai te matar.
Por se tratar duma realidade muito absurda, “A Lagosta” adota uma narrativa fabulesca e surreal, narrada em tom de ironia e com uma trilha sonora estrondosa, exagerada e gritante, que vai de encontro com a loucura da película ao não medir esforços em soar gigante e histriônico. É tudo fora do comum, desde os momentos em câmera lenta, ovacionando a violência das caçadas de forma poética, até os personagens. As atuações são nem um pouco naturalistas, afinal, há nada de “natural” naquela realidade. Há um forte teor mecânico, ensaiado e desconfortável nos personagens, vítimas de um sistema opressor que os obriga a “serem felizes”, além de forçar de maneira quase ufanista a máxima “ser solteiro é ruim”. É válido pontuar a falta de nomes para os personagens, com exceção do protagonista. Todos os outros são designados a partir de características físicas e sociais, tornando ainda mais impessoal e distante o processo de romantismo.
Isso nada mais é que uma versão hiperbólica da nossa própria realidade. Vivemos num sistema onde você necessita ser feliz, e só pode ser feliz ao lado de alguém. Ser feliz sozinho é algo estranho. Não querer casar? Nossa!, como pode? Você não pensa no futuro? E quando virar velho, vai viver sozinho? E filhos? Eles são uma dádiva, você só é completo como ser humano depois de filhos!
Esse processo pode ser chamado de expansão dialética: é o exagero de algo para mostrar como o objeto escolhido tem irregularidades, e Lanthimos é mestre nisso – “Dente Canino” e “Alpes”, os dois filmes anteriores a “A Lagosta”, se utilizam do mesmo processo, sendo usado de forma mais incisiva neste novo. Exagerando o desespero constante para achar a cara metade em algo que pode te transformar num animal, o diretor mostra que talvez nós estejamos fazendo as coisas da maneira errada.
A própria ideia em ser transformado num animal revela muito. O ápice dessa busca desenfreada acaba nos transformando em animais dispostos a tudo para alcançar o “amor”, literalmente saindo à caça de outros seres humanos que simplesmente preferem estar felizes consigo mesmos. E a maneira forçada que nos levamos a buscar alguém é quase o instinto animal de procriação: bate o sistema interno e lá vão eles atrás do acasalamento. No filme, um dos personagens, interessado numa mulher que sofre com sangramentos nasais, passa a bater seu nariz em qualquer coisa para também sangrar. Só assim eles serão realmente compatíveis.
Novamente é o filme nos levando ao extremo, mas não é muito difícil encontrarmos casais que se moldam só para se encaixarem, mesmo que isso custe um preço alto demais. Somos mais que relacionamentos mentirosos, ou pelo menos deveríamos ser – e é essa a cruz de David, que um dia percebe que é muito mais difícil fingir que você tem sentimentos quando não tem do que fingir que não tem sentimentos quando os tem.
Na segunda metade do longa, David foge para a Floresta, onde decide viver solteiro junto com os Solitários. Mas a Floresta também tem suas regras. É terminantemente proibido qualquer tipo de ligação amorosa, contato sexual ou qualquer atividade do tipo. Você é obrigado a cavar uma cova, que será usada quando você morrer. É o êxtase do “morrer sozinho”. Porém David conhece a Mulher Míope (Rachel Weisz) e se apaixona, algo completamente contra as regras. A Chefe dos Solitários (Léa Seydoux) começa a perceber a aproximação dos dois, o que acarretará em complicações na relação.
Ao sairmos do Hotel e chegarmos à Floresta, o ritmo do filme muda, pois as realidades são conflitantes. Na Floresta podemos ter deslumbres maiores do mundo onde os personagens vivem: David, Mulher Míope, Chefe dos Solitários e o Nadador Solitário vão ocasionalmente à Cidade para comprar suplementos e visitar os pais da Chefe dos Solitários, que acreditam na fachada da filha. Ela seria casada com o Nadador Solitário e David com a Mulher Míope – encenação que estes dois começam a gostar cada vez mais, o que, na mesma proporção, vai enfurecendo a Chefe dos Solitários.
Se de um lado os hóspedes do Hotel caçam os Solitários, estes decidem se vingar de maneira hilária: vão até o hotel e começam a criar intrigas nas relações: Chefe dos Solitários invade o quarto da Gerente do Hotel e seu marido, amarrando a mulher e apontando uma arma na cabeça do homem. “Numa escala de 1 a 15, o quanto você ama essa mulher?”, pergunta a Chefe. “14”, responde o homem, uma marca “impressionante”. Então ele tem que escolher levar um tiro ou atirar na mulher. Ele escolhe atirar na esposa. A arma, para seu espanto, não estava carregada, porém é tarde demais. O marido escolheu tirar a vida da mulher. A discórdia estava plantada.
Dentro de todos os trunfos de “A Lagosta”, um dos mais gritantes são as atuações. Todos os atores estão tão imersos dentro da realidade daquela distopia que conseguem se descaracterizar com louvor, principalmente Colin Farrell e Rachel Weisz, ambos portando um tom cômico, delicado e quase infantil, o que cria química imediata entre os dois. Léa Seydoux, que há muito tempo comprovou ser uma das atrizes mais talentosas da nossa geração, está brilhante no ríspido papel, chegando a soar amedrontadora e calculista, mesmo com traços dóceis. E o que dizer de Olivia Colman genial no papel da Gerente? A atriz consegue compor uma personagem irônica, divertida e que acredita piamente que aquela realidade é correta. Mesmo com poucos momentos em tela, Colman rouba as cenas em que aparece.
“A Lagosta” é uma obra-prima do humor negro e, por que não?, do cinema de romance que já nasceu com cara de clássico cult. Mesmo sendo o primeiro filme do diretor falado em inglês, claramente visando maior visibilidade no mercado, este deve em nada aos seus filmes anteriores, vindo sempre autoral e com a essência do cinema “lanthimosiano”, a alegoria metafórica que vem para cutucar e incomodar, algo que muitos diretores perdem ao saírem de suas terras-natais para se aventurar em filmes comerciais.
Mas afinal, qual animal você escolheria?
Publicado originalmente em: http://capitalteresina.com.br/colunas/cinematofagia/corrida-para-achar-cara-metade-no-bizarro-lagosta-pode-salvar-sua-vida-ou-nao-1562.html
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