Tom Hooper está à procura de mais um Oscar. Vencedor do careca dourado de “Melhor Diretor” pelo questionável e esquecível “O Discurso do Rei”, Hooper, naquele ano, viu seu filme levar ainda “Melhor Ator”, “Melhor Roteiro Original” e “Melhor Filme”, num ano abarrotado de filmes muito mais interessantes e inesquecíveis (“Cisne Negro”, “A Rede Social”, “Toy Story 3”...). É a Academia se curvando para a forma de bolo.
E o que é a forma de bolo do Oscar? Segue a receita: um punhado de roteiro didático, um litro de grande atuação do protagonista, duas colheres de fotografia sóbria (dourada, de preferência), trilha sonora cheia de pianos e violinos à vontade e uma grande pitada de história de superação. Voilá! Eis o filme feitinho para o prêmio. Às vezes a Academia consegue surpreender e premiar algum filme que fuja da receita, como “Birdman” no ano passado, mas se couber na forma, pelo menos indicação terá.
Infelizmente (para o diretor), seu novo filme, apesar de ter todos os itens listados, não parece caminhar para grandes indicações. “A Garota Dinamarquesa” se baseia na história de Lili Elbe, uma pintora que, nos anos 30, foi uma das primeiras transexuais a se submeter à cirurgia de redesignação sexual. Lili é interpretada por Eddie Redmayne, recentemente vencedor do Oscar de “Melhor Ator” ao interpretar Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”. Com o prêmio, recebido com louvor, em mãos, os holofotes se viraram para o ator, o que gerou um grande movimento contra sua escalação. Por que não escalar uma atriz trans para o papel?
Uma das primeiras justificativas foi “Na década de 30 as trans não passavam por reposição hormonal, por isso tinham traços ‘masculinos’”, o que é um argumento bem nulo. O próprio diretor, durante o Festival de Veneza, comentou que escolheu Redmayne porque ele possui traços femininos, o que desarma completamente a lógica anterior. A questão aqui não são os “traços”, e sim a representatividade.
Pense rápido: quantos atores/atrizes trans você já viu atuando no cinema? Caso consiga pensam em algum(ns), compare com o número de artistas cis. A diferença é esmagadora, certo? Mesmo, de uma forma ou de outra, colocar em pauta a transexualidade, “A Garota Dinamarquesa” é um filme sobre trans sem nenhuma trans. Era como se “Selma: Uma Luta Pela Igualdade”, filme sobre Martin Luther King, não possuísse atores negros.
Certo, a arte de atuar possui beleza quando vemos atores se despindo de todas suas características e encarnando personagens cada vez mais desafiadores e fora da sua realidade. Foi assim como Felicity Huffman em “Transamérica” e Jared Leto em “Clube de Compras Dallas”, este levando o Oscar pela atuação. E realmente não houve toda a discussão que houve durante a divulgação de “A Garota Dinamarquesa” no lançamento dos citados, mas isso inviabiliza as atuais discussões? Não, só mostra que as pessoas estão cada vez mais preocupadas com a questão da representação, o que é maravilhoso.
Todavia, ao contrário de Huffman e Leto, que orquestraram atuações brilhantes, Redmayne copia e cola sem piedade os trejeitos e expressões que usou em “A Teoria de Tudo”, o que soa completamente equivocado e ainda mais sem peso para sua escolha. Em diversos momentos parece que é Stephen Hawking ali na tela – há uma cena numa cadeira de rodas e é exatamente a mesma composição de personagem. A carga dramática do roteiro e os violinos chorosos da trilha são o que sustentam o melodrama, pois o ator claramente é um homem tentando a toda força parecer uma mulher, ao invés de ser a mulher que Lili sempre foi.
A caracterização do personagem, feita por “imitação dos jeitos femininos” (cof) é ofuscada por Alicia Vikander, que interpreta Gerda, esposa do então Einar. A atriz sueca, que vem despontando recentemente e brilhou em “Ex Machina: Instinto Artificial”, rouba toda a cena e é o pilar central de todo o longa, o que torna o mesmo uma obra torta: como o filme é sobre a Lili e é Gerda que toma os holofotes? Esse efeito acontece porque o roteiro pontua mais o relacionamento dos dois do que de fato a questão transexual da protagonista – outra vez remetendo “A Teoria de Tudo”, onde os acontecimentos se passam na visão da esposa.
E até mesmo o desenvolvimento de uma esposa descobrindo que seu marido é na verdade uma mulher não alcança voos tão altos como em “Laurence Anyways” do Xavier Dolan, que trata com muita mais profundidade a mesma discussão – um roteiro oscariável não poderia se dar ao luxo de se alongar como Dolan fez em seu filme de 3h. Mas nem isso é justificativa. O longa “Tangerina” possui apenas 88 minutos e consegue construir um filme sólido e reflexivo sobre a realidade da pessoa trans – isso sem falar que as protagonistas são atrizes trans. “A Garota Dinamarquesa” é raso em todos os aspectos narrativos, tendo pouco impacto no florescer do próprio tema.
E o que dizer de um filme chamado “A Garota Dinamarquesa” falado em inglês? Imaginemos um filme chamado “A Garota Brasileira” filmado na Argentina e falado em espanhol. Seria completamente errado, não? Pois é. Lili viveu na Dinamarca e, para completar suas cirurgias, se mudou para a Alemanha, porém o longa é um típico filme inglês, o que joga por terra a nacionalidade e cultura da própria história. Esquecemos completamente da Dinamarca com a narrativa, que pontua raras vezes que estamos no país, e não no Reino Unido.
São vários os motivos que apontam Tom Hooper cada vez mais distante de conseguir arrematar alguma estatueta com o filme, e, ao que parece, seu estilo feito para prêmios está passando batido perto de tantos filmes que ousam sair do lugar-comum – mesmo este sendo “bem intencionado”. E, no final do dia, é bem melhor produzir uma obra que tenha relevância no público e na arte como um todo do que uma estatueta na estante – algo que “A Garota Dinamarquesa” passou longe.
Publicado originalmente em: http://capitalteresina.com.br/colunas/cinematofagia/discussao-sobre-transexualidade-em-garota-dinamarquesa-e-tao-rasa-quanto-bem-intencionada-1526.html
Depois de a Teoria de Tudo, esperava que Redmayne fosse repetir uma boa atuação, apesar de não ser nada tal espetaculoso o que ele fez interpretando Hawking, apenas bom. Bom texto.
Eu gostei bastante da atuação dele em A Teoria de Tudo, mas não era meu preferido ao Oscar no ano passado - gostei mais de Steve Carell e Michael Keaton. Esse ano ele vai só esquentar cadeira, porque, além da atuação medíocre e inverossímil, até agora levou o montante de 0 (zero) prêmios, ao contrário do DiCaprio, que tá levando tudo merecidamente. Vikander também não leva, pelo menos por esse aqui. As chances dela são maiores em Coadjuvante por Ex Machina. Resumindo: esse Garota Dinamarquesa vai voltar pra casa sem nada.
Eu também não gosto dessa ideia de filmar uma história de um determinado país em outra língua e com outro viés cultural. É o caso de Dr. Jivago, por exemplo. Eu entendo que pelo contexto histórico complicado na época e pela censura da obra em seu país de origem, não tenha sido possível ver uma adaptação genuinamente russa, mas mesmo assim ainda é muito estranho ver uma história que se passa na Rússia, que não foi filmada na Rússia, não tem nenhum ator russo em seu elenco e é toda contada em inglês, tanto é que o filme mais parecia se passar na Inglaterra do que na Rússia!!
Os esforços de Dr. Jivago foram beeeem maiores, a gente fica sempre em mente a localização e a cultura. Tem a questão comercial que é o maior peso - filme em inglês vende mais, óbvio, mas aqui me incomodou porque, ao contrário de Jivago, eu realmente esqueci que não estávamos na Dinamarca. Li que houveram filmagens lá, mas né. Soou preguiçoso.