A violência segue um conceito muito subjetivo. Cada um define para si, ou é definido para ele através dos outros, o que vê como violência, sendo que alguns atos ou acontecimentos são definidos como violentos e acatados desse modo por imensa maioria da sociedade. Ou seja, a violência é definida em grande parte pela visão do conjunto, alcançando um elemento superior àquela criada pelo simples indivíduo. E se a sociedade confunde seus valores morais e imorais, não estaria ela criando valores deturpados de violência? Ou, em outra via, não estaria ela banalizando a violência?
Frank White (Christopher Walken) está deixando a prisão. Ele é um voraz homem de negócios ilegais, um político Robin Hood clássico. Oferece drogas a quem quer comprar, mata quem o desobedece ou atrapalha seu caminho, porém trata com respeito o miserável, o excluído pela sociedade. White é o Rei de Nova York. Trabalha à margem da lei de um sistema falido, é um monarca que cuida de um povo democraticamente esquecido. Anda de metrô, com os suburbanos, vive no meio underground, com os negros. Quando jovens tentam assalta-lo com um mero canivete, ele levanta seu casado e exibe seu revólver, mostra que tem o poder e que ele é quem está no comando. Mas mesmo assim entrega o dinheiro e oferece trabalho aos jovens que queriam lhe tirar o que era seu. Mas e esses jovens, algo não foi tirado deles antes disso? A oportunidade que o estado não lhes deu é dada pelo rei.
Os princípios filosóficos e religiosos sempre foram debatidos na obra de Ferrara. Se anos mais tarde ele viria a trabalhar isso mais diretamente com Os Viciosos (The Addiction, 1995), aqui a figura de Christopher Walken é uma espécie de arquétipo para ele falar sobre a moral. White poderia muito bem ser definido através dessa passagem de Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche: “Tão frio, tão gélido, que se queima os dedos nele! Toda mão que o toca, assusta-se! – E precisamente por isso muitos o tomam por ardente”. Quem sabe alguém que, justamente pela falta de sentimentos, busca se aproximar do próximo para preencher seu vazio moral.
Nova York é a maquete de estudo de Abel Ferrara nesse filme. Mas não é aquela Nova York bonita. É uma Nova York real, multifacetada, colorida e cheia de misturas. Nova York de negros com grandes correntes de ouro e prata, de chineses fortemente ligados à cultura de sua terra mãe, de irlandeses festeiros e latinos tentando uma nova vida. Nova York, uma grande salada de seres humanos lutando entre si e ao mesmo tempo criando laços. Um lugar onde o dinheiro do tráfico de cocaína serve para manter um hospital infantil aberto. Como se define a moralidade de um lugar tão dissonante em si?
Acima de tudo, a obra de Ferrara trata de linhas. Divisões. Muros. Nós e eles. Por outro lado essa dicotomia é indefinida. Não há separação entre bem e mal, existem bons bandidos e maus policiais, criminosos generosos e políticos corruptos. Nem entre negros e brancos, existem bandidos brancos, policiais brancos e policiais negros e bandidos negros. A linha existe, está ali, alguns andam de um lado e outros de outro. Os motivos são infindáveis, até podem ser bobos se analisados friamente, mas ainda assim são motivos. Mas no final esses motivos pouco importam. Nota-se que as mudanças e diferenças são tão orgânicas que essas fronteiras nem existiriam se a questão fosse rasa como a velha luta entre o bem e o mal. Essas linhas existem e estão ali pois a pluralização traz também a igualdade. E assim essas linhas atravessam a cidade, como a linha do metrô e as ruas do Bronx.
Mas há também a Ponte de Manhattan. O elo entre os distritos de Manhattan e Brooklyn, filmado por Ferrara em diversos momentos. White sai da prisão, – “a jaula”, como define seu capanga Jimmy (Laurence Fishburne) – e passa diretamente pela ponte para voltar ao seu domínio, o Brooklyn. Os créditos ainda estão subindo e já se pode ver que White – coincidência esse sobrenome? –, um homem branco, volta para o lugar onde ele se sente em casa. Com seus amigos e semelhantes negros.
O Rei de Nova York (The King Of New York, 1990), vai além de outros exemplos de filmes sobre a máfia nesse quesito. De maneira intrínseca, essa sutil e ao mesmo tempo barulhenta digressão pela sociedade contemporânea nos mostra as causas e efeitos dos atos. É fácil classificar de modo hermético o bem e o mal. Difícil é manter essa coesão ao analisar as diversas vírgulas que mudam o resultado do ponto final.
* Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
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